Com a oportunidade disruptiva de mudar a quadra histórica, no que diz respeito à composição do Supremo Tribunal Federal, o presidente Lula anunciou nesta quinta (1º) a indicação do advogado Cristiano Zanin para a vaga em aberto.
Afora a expectativa pela indicação da primeira mulher negra à Suprema Corte, buscamos entender se a “fome”, da insegurança alimentar à insegurança jurídica, como aprendemos com Carolina Maria de Jesus, foi suficiente professora para o presidente ser compelido a tal decisão.
A série de apagamentos sistemáticos, não por ausência voluntária, desinteresse, omissão ou despreparo das mulheres negras do direito, não desqualifica o tamanho do trabalho realizado e triunfos alcançados pelos movimentos sociais negros e de mulheres negras. Estes, mesmo com a tardança típica de toda construção de tessitura favorável de interesses na esfera pública, entre pares e aliados, têm descortinado as pretensões resistidas pela institucionalidade e seus ritos autodeclarados neutros e isentos.
Não é à toa que nas lições de Sueli Carneiro, compartilhadas por Bianca Santana na obra “Continuo Preta: A vida de Sueli Carneiro”, somos confrontados com o lamento-denúncia da intelectual, que sintetiza a experiência das mulheres negras no poder como sendo uma relação de ausência, portanto, um tema praticamente inexistente.
É importante questionar como o governo Lula, que deve fazer mais uma indicação ao STF neste ano, optará ser lembrado no tocante à indicação de juristas para ingressarem nas cadeiras atualmente vacantes dos tribunais superiores, considerando a massiva, estratégica e altissonante participação da sociedade civil em apontar um caminho de justiça racial.
Ainda que a metodologia vigente, ínsita à indicação, não autorize um “controle social” ao ato indicativo do presidente Lula, não seria intelectualmente honesto prescindir do fato incontroverso de que questões constitucionais são questões, de todo, não em parte, políticas e de imanente interesse público e que a sociedade precisa ser ouvida e atendida quando justiça, equidade e reparação são reclamadas.
Representatividade
Ainda vale ressaltar que a noção de “representatividade” é um componente essencial no enfrentamento ao racismo e temos afirmado que ela não se esgota na estética racial ou no reconhecimento da diversidade fenotípica e tons de preto – do mais claro ao mais retinto – existentes na população negra.
Entretanto, estética racial e fenótipos negróides não deixam de ter importância, eles também são relevantes para afirmação da representatividade, desde que ela não se esgote neles. Isso porque a questão da representatividade atrai discussões mais profundas e indigestas. Principalmente em um contexto em que, de acordo com o CNJ (2020), será necessário cerca de um quarto de século para a ocupação de 20% dos quadros da magistratura por pessoas pretas e pardas.
Quilombos jurídicos
É notável a crescente tendência organizacional entre órgãos e membros do Poder Judiciário com o objetivo de construir uma rede de apoio e discussão institucional sobre raça, racismo, relações raciais, gênero e diversidade sexual no âmbito dos tribunais.
O mesmo fenômeno se intensifica nas defensorias e nos ministérios públicos. A advocacia negra e o movimento de mulheres negras no direito também têm crescido e se fortalecido em grupos políticos que podem ser identificados como quilombos jurídicos contemporâneos.
Isso porque a mera presença de pessoas negras nas instituições democráticas, especialmente no sistema de justiça e no maior símbolo nacional dele, que é o Supremo Tribunal Federal, também não garante a concessão de selos antirracistas ao Estado brasileiro, já condenado internacionalmente por racismo institucional.
Pessoas negras nos espaços de poder tampouco amenizam as relações raciais conflituosas que organizam nossa sociedade, que foi racializada compulsoriamente, a partir da opressão colonial, mas reorganizam a lógica do poder. Justamente porque o que dita a dinâmica das relações raciais são as relações de poder para atravessar e ancorar, pelo racismo, as estruturas e instituições.
Os princípios constitucionais que regem todo o ordenamento jurídico brasileiro precisam ser julgados por profissionais que conheçam as diversas e adversas realidades sociais e admitam que, na disputa de sentido da norma é que o direito é significado, bem como na ampliação do conjunto de intérpretes legitimados a dizer o direito.
A novidade é que as mulheres negras, no plural, fazem jus à recolocação – do imaginário social de subalternidade às estatísticas de péssimas condições de vida – e que a qualidade rara de jurista negra não é sobre a escassez dessa categoria, mas pela singular e extraordinária potência chamada a ocupar um assento no maior tribunal do Brasil.
*Maíra Santana Vida é advogada, professora, cofundadora do AGANJU (Afrogabinete de Articulação Institucional e Jurídica/Jurídico da Coalizão Negra por Direitos), membra consultora do IDAFRO (Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras), além pesquisadora em direitos humanos e co-coordenadora dos Comitês Antirracistas da Bahia, iniciativa Quilombo nos Parlamentos (CND).