Marcia Tiburi: uma filósofa engajada

Uma rara pensadora sem fronteiras, capaz de se fazer entender pelo mais variado público, do erudito ao popular, dos teóricos contemplativos aos aguerridos militantes políticos por um outro mundo possível. Contestadora e coerente, de um pensamento denso sem ser prepotente, Marcia Tiburi é o exemplo vivo de uma intelectual capaz de praticar o próprio pensamento e, ainda, deliciar seus leitores com belos e significativos textos.

Por Rubens Casara Do Caliban

Marcia Tiburi nasceu no sul do Brasil em 1970 e começou a estudar filosofia no final dos anos 80, enquanto também cursava a faculdade de artes. Doutorou-se em filosofia no final dos anos 90 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com uma tese sobre a obra do pensador alemão Theodor Adorno. Em seguida, fez estudos de pós-doutoramento sobre história da arte e feminismo na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Marcia Tiburi, filósofa, professora universitária e romancista tornou-se conhecida a partir do ano de 2002 quando começou a participar de diversos programas da televisão brasileira, em um momento no qual o cenário cultural latino-americano abria-se para temas e abordagens filosóficas. Em uma quadra histórica na qual a filosofia acadêmica ainda dava passos muito comedidos (poder-se-ia dizer envergonhados), em busca de algum distanciamento em relação ao clero e ao trauma produzido pela ditadura civil-militar instaurada em 1964, aquele por conservar algum protagonismo no ensino da filosofia no Brasil, este em razão das consequências sentidas por conta da censura e do processo de desqualificação direcionado aos estudos filosóficos, o simples fato de algumas mulheres se dedicarem à filosofia era uma imensa novidade em um contexto também sexista e conservador. Na época de seu doutoramento, Marcia Tiburi era uma das poucas professoras doutoras em filosofia a lecionar em universidades brasileiras. Hoje, com a lenta mudança desse cenário, se já existem muitas jovens a estudar e ensinar filosofia, a presença de Marcia Tiburi, na vida intelectual e política brasileira, ainda impressiona.

Com a virtude daqueles que não se conformam com respostas fáceis e descontextualizadas, essa filósofa brasileira investiu na reflexão e na criação, problematizou questões desprezadas na tradição filosófica ocidental, buscou novas chaves de leitura para os mais variados pensadores e buscou compreender fenômenos atuais como o neofascismo e o processo de mutação simbólica, com a antipolitização e o individualismo, como a estético-mania e a plastificação das pessoas e das relações intersubjetivas, sempre a levar em conta a articulação dos saberes e a dimensão ético-política da vida em comum.

Tiburi tornou-se professora em um momento no qual a questão do ensino de filosofia recomeçava a ser problematizada após longo período ditatorial. Esse tema jamais deixou de importar-lhe e algumas de suas obras (Filosofia em Comum, Filosofia Brincante, entre outras) nasceram de sua experiência como professora. Uma professora que, além de ensinar em universidades, protagonizou cursos livres, conferências e palestras nos mais diversos ambientes, dos mais acadêmicos aos mais populares. Na base de seu ensino está a ideia de que a filosofia não é uma atividade reservada apenas a eruditos ou especialistas, muito menos deve reduzir-se à leitura e interpretação da tradição ou a uma historiografia de ideias, o que lhe rendeu o ódio da indústria de produzir filósofos prêt-à-porter. A filosofia sempre foi para ela uma experiência única e transformadora, um trabalho do pensamento na intenção de expandir compreensões e visões de mundo. A aliança entre filosofia e educação, nesse sentido, define-se em termos ético-políticos, relativos a um projeto de sociedade em cuja base está o pensamento crítico, aquele pensamento incomodado e incômodo, voltado ao desvelamento daquilo que se esconde no discurso oficial, na aparência de verdade, no senso comum.

Sempre a pensar e atuar na vida pública como filósofa engajada, sua experiência em diversos programas de televisão levou-a a escrever livros como o importante e original Olho de Vidro — a televisão e o estado de exceção da imagem, obra que se propõe como um ensaio de filosofia política da imagem de caráter altamente crítico, demolidor das estratégias de produção de subjetivismos a partir das máquinas de idiotizar cidadãos. Para ela, a televisão, a funcionar como “prótese do pensamento”, e os fenômenos midiáticos requerem atenção e precisam ser compreendidos na linha que conecta estética e política, espetáculo e excitação. Por meio de um fio construído no entrelaçamento de saberes múltiplos, Tiburi busca abrir espaço para refletir sobre a experiência fenomenológica da televisão em relação ao telespectador, essa figura subjetiva de nosso tempo espetacular em que a “imagem” tornou-se mercadoria privilegiada no altar do Deus-Mercado.

A investigação filosófica de temas desprezados ou esquecidos é uma das preocupações de Tiburi, sempre atenta à funcionalidade política desse jogo de velamentos e desvelamentos. Interessa-lhe o terreno do “banal”, aquilo que diz respeito à vida de todos, inconscientes e alienados que estão de sua própria experiência. Também nesse caso, o que Tiburi está a buscar é a capacidade de pensar e refletir sobre o que se supõe ser “natural” e imutável, portanto, matérias que, no mais das vezes, não são objeto de reflexão. Na obra de Marcia Tiburi, a filosofia vem a ser uma chave de acesso a um mundo outro, transcendente, mas possível de ser concretizado. O projeto filosófico de Tiburi aponta a necessidade de perfurar, com a coragem e a insubordinação inerentes ao pensamento crítico, “o muro de cimento do senso comum”, desfazer os blocos monolíticos compostos das certezas a que somos lançados sem reflexão, um efeito destruidor, revolucionário, como condição de possibilidade do verdadeiro diálogo (não de monólogos travestidos de diálogos), dessa forma democrática de transformação da sociedade e de resistência às tentações autoritárias.

Como ela gosta de frisar em suas falas e escritos, a grande contribuição da filosofia para o nosso tempo continua a ser o diálogo. Entendido como uma teoria-prática à qual as pessoas mais diversas podem ter acesso, o diálogo é uma experiência do pensamento radicalmente democrática. A filosofia, na forma como Tiburi a compreende, não seria um tipo de teoria que se explica às pessoas para convencê-las de uma ideia ou das vantagens de um argumento, mas um convite a pensar com o outro e, em tempos autoritários, um convite a pensar mais e, fundamentalmente, resistir politicamente por meio desse pensamento preocupado em ir além de si, de superar o solipsismo que tem marcado a atuação dos atores sociais. O papel do intelectual, que Marcia Tiburi assume sem concessões, está claro como um papel político, como efeito de uma reflexão engajada e militante.

Tiburi nos mostra que, em contextos sombrios, como os que vivemos hoje em dia em escala mundial, no qual o saber é substituído pela força e o medo da liberdade gera movimentos autoritários, a filosofia como teoria e como prática é um verdadeiro programa de resistência, um programa ético-político. É dessa forma que se pode ler a obra dessa filósofa, que vai da pesquisa acadêmica, que resulta em artigos de circulação mais restrita, até textos produzidos semanalmente para diversos veículos e diferentes públicos. A variedade dos livros, dos ensaios filosóficos aos romances, faz parte dessa riqueza produtiva a ser compreendida em termos multi e interdisciplinares, mas, sobretudo, como gesto de autonomia intelectual e potência criativa.

Em seus textos, Marcia Tiburi nos convida a combater a visão restritiva e elitista da produção filosófica, que está na base de práticas e políticas (promotoras ou destrutivas da política como ela gosta de afirmar) em que a exclusão, seja da linguagem, seja das pessoas singulares, é a regra. Expandir a filosofia é o seu objetivo. Se o convite a pensar continua interditado em todos os contextos autoritários, restrito a pequenos grupos, Tiburi aciona a potência subversiva de sua reflexão “para” e “com” todos. E isso se torna visível diante do esforço empreendido pela filósofa para a constituição de uma obra consistente e de rara originalidade. Por isso, é fácil perceber o diálogo travado entre as diversas obras da autora, em meio a uma constelação de temas e questões que nos permite ver a imagem do nosso tempo.

Se pudéssemos resumir o pensamento de Tiburi, diríamos que estamos diante de uma filosofia da alteridade. Alteridade radical, já presente em Filosofia Cinza — A melancolia e o corpo nas dobras da escrita (2004), livro em que a rejeitada questão do corpo é exposta numa pesquisa que vai das fontes mais tradicionais ao que chamaremos, junto com ela, de uma “pop filosofia”, instrumental capaz de pensar os clássicos do cinema e da literatura, mas também os exemplos menos triviais do mundo das artes. Alteridade presente em diversas obras da filósofa sempre a exigir o reconhecimento do “outro” no campo da política, a chamada “alteridade democrática” que reivindica seu lugar e se manifesta como presença da singularidade, como direito a fazer-se ouvir na cena pública. A filosofia da alteridade que é uma necessidade em tempos de ode ao ódio, o que justifica o brilho atual de seu mais recente livro,Como Conversar Com um Fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário.

Na visão de Tiburi, é preciso prestar atenção ao cotidiano como um laboratório ético-político, o lugar da experiência, do banal e do extraordinário, o lugar daquilo que prescindimos de pensar e de elaborar. A obra de Marcia Tiburi nos convoca a prestar atenção às condições concretas da percepção dos mínimos fatores que nos constituem. Por isso, ela nos coloca no campo de uma filosofia como política, de uma fenomenologia política. Em sua obra o questionamento é político. A política não pode ser o território apenas da adesão partidária ou institucional, pois deve abarcar tudo aquilo que concerne à vida de todos, seres que, para os atos do convívio, devem partir da questão “como me torno quem sou”, o que diz da formação de cada um, em seus pertencimentos de classe, raça, gênero e sexualidade.

Não por acaso, Marcia Tiburi divide seu tempo entre as salas de aula, a produção teórica e a prática política concreta. Em 2015, fundou o movimento feminista #partidA, experiência estruturada de forma horizontal a atuar como partido, na desconstrução do sistema de dominação patriarcal, em meio à conturbada vida política brasileira. Presença constante em movimentos emancipatórios, sempre ao lado dos excluídos e de redução das desigualdades, contra todos os dogmas ou tendências totalitárias, Marcia Tiburi ocupa destacada posição entre os intelectuais que buscam transformar a sociedade global.

Marcia Tiburi toca a todos na tentativa de mostrar que estamos afundados em teorias do começo ao fim de nossas existências e que a filosofia é, como pensar cuidadoso e qualificado, a única forma de produzir compreensões críticas que ultrapassem ideologias apontadas como “teorias científicas” ou “saberes populares” a alimentar a lógica publicitária que rege a sociedade. A questão, o que estamos fazendo uns com os outros, surge em sua obra como um problema mais do que moral, como a questão que nos permite avaliar o caráter performativo de nossos gestos, os efeitos que causamos em nosso mundo, com o que somos, o que dizemos e o que fazemos.

Se os ensaios estão comprometidos com uma filosofia crítica voltada ao seu tempo, do mesmo modo os romances apresentam-se como esferas produtoras de atenção ao mais delicado, aquilo que tendemos a esquecer nos tempos da banalização da subjetividade característicos de nossos dias. Também em seus romances, por mais audaciosos que possam ser em termos formais, vemos a provocação de um pensamento crítico, perturbador da “normalidade”, a abertura a uma outra sensibilidade, no nexo entre política e estética, com a intenção de politizar a estética por meio da denúncia crítica da estetização da política típica de nosso tempo.

Enfim, apresenta-se nesta oportunidade uma obra marcada por um pensamento original, atenta ao seu tempo e criativa no desejo de compreendê-lo, Marcia Tiburi se tornou uma intelectual pública sem fronteiras, com marcante atuação comprometida com a radical transformação da sociedade, sempre a chamar a atenção à necessidade de pensar na era que se caracteriza pelo vazio do pensamento. Vale registrar que, no caso de Tiburi, a abertura ao diálogo público se deu espontaneamente, em um contexto em que ninguém é convidado a ser um intelectual público, muito menos quando se é jovem, mulher e feminista.

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