Mateus Solano e a hipersexualização do negro

Um negão para o Félix chamar de seu

Não é de hoje que a novela de Walcyr Carrasco, ‘Amor à vida’, tem causado polêmica nas questões étnico-raciais. Há alguns meses atrás, o autor recebeu de telespectadores reclamações de que não havia nenhum negro no elenco. Verdade, não tinha nenhum preto escalado para o folhetim. Depois dessas queixas, chamaram Ana Carbatti para fazer o papel de uma doutora que até então não estava na sinopse. Num país onde mais de 50% da população é negra (IBGE), é no mínimo estranho não haver gente dessa etnia numa trama com tantos atores, mas a discussão não é essa.

A polêmica da vez surge de uma declaração do ator Mateus Solano — principal antagonista (e destaque) da trama. Em entrevista, o ator afirmou “Eu cheguei até a cogitar que o Félix seria preso e que encontraria um negão na cadeia que faria ele feliz, ou coisa parecida”. Nesse momento, ouço Ali Kamel berrando “não somos racistas”. Mas nada me tira da cabeça que o discurso de Solano (consciente ou não) se baseia em antigos pilares da estereotipia para estigmatizar o negro alto e corpulento — ou, como o próprio ator classifica: o negão.

Ao longo dos séculos, foram construídos e reproduzidos diversos estereótipos sobre o corpo negro, como da mãe preta, da mulata sensual, do negro-de-alma-branca e do negão (aqui um belo trabalho sobre isso no cinema). Esses estereótipos não são motivos de orgulho nenhum e só servem para estigmatizar e reduzir a figura do preto que o carrega e do grupo ao qual faz parte.

Ao negão – homem negro, alto, forte/corpulento – são conferidas duas características principais, a hipersexualização e a violência. A primeira se traduz no suposto pênis gigante e no excessivo vigor sexual que faria desse cara um ser muito mais viril que o homem branco e, assim, desejado pelas mulheres e homossexuais (Félix, como insinua Solano). A primeiro momento, essa característica pode conferir certo status para o negão, mas há um processo cruel que o reduz a mero objeto sexual. Essa redução à coisa sexual retira a legitimidade do negão a algo “maior e mais nobre” que o tesão, o amor – a ele não é permitido amar ou ser amado.

A segunda característica, a violência, atribuída a esse homem negro é representada pela transgressão, pelo jeito rude, bravo e estourado que não se molda aos ideias de civilidade europeus. E, na fala de Solano, se aproxima de uma transgressão civil que o levará para a cadeia, onde a maior parte dos presidiários é de outros corpos negros.

Ao se atribuir a hipersexualização e a violência a um mesmo indivíduo, esse é afastado do humano e aproximado da coisa. Isto é, animaliza-se esse homem negro, colocando-o num espaço de um instinto sexual que beira o ‘estar no cio’, de menor racionalidade e de menor legitimidade de um relacionamento que envolva amor.

A leitura que faço do discurso de Mateus Solano é de que um homem negro, alto e forte é predisposto a atos violentos (por isso preso) e tem um apetite sexual enorme, tal como seu pênis. E só assim o Félix terá seu castigo e sua redenção. Há outro problema na fala do ator que reduz o ideal de felicidade homossexual ao sexo, mas isso é assunto pra outra hora. O problema aqui apresentado é a reprodução nos dias de hoje de pilares de estereótipos racistas de períodos escravocratas.

Mais uma vez: como é possível que uma pessoa pública encarcere o homem negro, o hipersexualize e o transforme em um destino a altura de um vilão que já jogou recém-nascido em caçamba de lixo, mandou matar outras pessoas e cometeu outros crimes?

Alô, Mateus Solano! Vamos ficar ligados, pois existe racismo quando se reproduz um discurso que estigmatiza um segmento da população negra e ainda quando essa fala supõe que um negão seja um destino justo (a punição e o prazer) para um criminoso como o Félix!

Alô, Ali Kamel, tá na hora de rever o discurso “não somos racistas”!

Por: Higor Faria

 

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Fonte: Medium

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