Ativista das questões raciais há mais de três décadas, Maurício Pestana é o titular da Secretaria Municipal de Promoção de Igualdade Social de São Paulo (SMPIR), cargo que ocupa desde junho de 2015.
Por Marcos Sacramento Do DCM
Em entrevista ao DCM, Pestana fala dos desafios de promover a igualdade racial no mundo corporativo, defende a ampliação de ações afirmativas em diversos segmentos da sociedade e comenta a respeito do recrudescimento pensamento conservador no Brasil e no mundo.
“O que estamos assistindo é um retrocesso na política de inclusão no mundo, seja ela racial ou social”, disse Pestana, que falou também do fenômeno político Fernando Holiday – rapaz negro que luta pelo fim das poucas conquistas obtidas pelo movimento negro até agora.
Qual o maior desafio para promover a inclusão de negros em cargos de liderança no mercado de trabalho?
O maior desafio é dar o primeiro passo. O entendimento de que, por razões históricas, os negros chegaram hoje em desvantagens neste país, pressupõe que é papel do governo e da sociedade ajudar a reduzir esta situação. O governo tem feito sua parte com a promoção e fomentação de políticas de ações afirmativas em concursos públicos levando em consideração a questão racial. Algumas empresas começam a perceber essa falta. Mas há muito para ser realizado e alcançado no setor privado, principalmente com relação ao desenvolvimento do mercado de trabalho.
As empresas estão preparadas para lidar com a diversidade étnica? Dias atrás saiu a notícia de uma funcionária negra humilhada em uma grande empresa de marketing. A presidente do grupo teria feito críticas ao cabelo trançado da funcionária, que se sentiu incomodada e reclamou com os superiores. Ela foi demitida em seguida.
O Brasil é o maior país negro fora da África. Embora os negros tenham moldado a cultura e identidade do nosso país, até sob os olhos estrangeiros, nossas elites sempre tentaram apagar, ignorar ou embranquecer nosso jeito de ser e não aceitar um cabelo crespo em uma determinada organização. Faz parte dessa negação, infelizmente, daqueles que detêm o poder no país. E o poder não é negro, portanto, cenas como essas ainda são comuns em muitos espaços, inclusive no mercado de trabalho. Precisamos denunciá-las e combatê-las.
As cotas produziram bons resultados na inserção no ensino superior. Esse aumento de negros na universidade se reflete com as mesmas proporções no mercado de trabalho?
Infelizmente não. Como disse anteriormente, sem o poder de decisão, o mercado também reflete o pensamento de quem o controla. Se não há uma base, uma política da direção de cima para baixo no intuito de promover mudanças, o conservadorismo e a política da exclusão permanecerão inalterados, como aconteceu ao longo do século XX.
Como a legislação pode contribuir para o aumento do número de negros nos postos de trabalho? O senhor é a favor de cotas para negros nas empresas?
Neste ano, justamente, o tema principal do Fórum São Paulo Diverso, promovido pela Secretaria da Integração Racial, que acontece no dia 9 de novembro, no Anhembi, será “Legislação e diversidade: como as leis podem fortalecer a inclusão racial no mercado de trabalho”. A programação será composta por cinco mesas que vão discutir a legislação como ferramenta de inclusão social e seu impacto na busca de soluções para o acesso e ascensão dos profissionais negros a oportunidades já existentes no mercado de trabalho formal, no estímulo do setor privado a adotar ações afirmativas em sua gestão interna e de fornecedores e na promoção e articulação entre empresas, empreendedores negros e representantes do poder público para a ampliação da oferta de empregos e a criação de novos negócios.
O mundo corporativo tem suas próprias regras e sistemática. Nada que é impositivo tem chances de dar certo neste mundo e, no estágio atual da nossa economia, a situação piora. Porém, podemos utilizar uma das regras do universo empresarial – que são as metas – para usar a nosso favor. Acredito que se um presidente de uma empresa estabelecer que a organização tem determinado período para incluir negros em seus cargos decisórios, o diretor de RH se sentirá muito mais pressionado a dar o resultado e se envolver no assunto, ao invés de ser obrigado por uma lei. Também acredito em incentivos para que haja mais diversidade nas empresas pois sabemos que as diferenças sociais no Brasil têm cor. A partir do momento em que a empresa se envolve mais na questão da desigualdade racial, ela também estará, de certa forma, ajudando a criar um país melhor e mais justo, ou seja, construindo uma sociedade melhor.
Como lutar contra o racismo na seleção dos funcionários? Na maioria das vezes é difícil comprovar se a decisão de não contratar alguém foi motivada por racismo.
Com sensibilidade, com pesquisas e com metas para mudar a cara e cor do ambiente de trabalho. É simples: se alguém olhar ao seu redor, no seu departamento, é fácil constatar que a presença de negros e de mulheres não é compatível com a população de fora da empresa – no caso brasileiro, as mulheres e negros são praticamente a metade da população. E isso não é um problema dos negros ou das mulheres. Então, é preciso não se acovardar, e tomar o problema para si e se questionar: o que eu estou fazendo para mudar isso ou para que este cenário se perpetue?
Uma pesquisa da agência de propaganda Heads constatou que em 3.038 inserções publicitárias analisadas, brancos estão sete vezes mais representados do que negros. O senhor é a favor de ações afirmativas na publicidade para mudar este quadro?
Sou a favor de ações afirmativas em todos os setores, desde o pré-primário até o doutorado. Em todas as funções tem de haver diversidade. No caso brasileiro, é só observar o caso do futebol e da música popular brasileira, repleta de estrelas negras e brancas reconhecidas mundialmente. A diversidade no Brasil nos torna referência para o mundo. Por outro lado, quando olhamos para setores como o da educação, nossas universidades, historicamente, sempre foram brancas. O caso da USP é uma aberração: a maior universidade do país não tem sequer 5% de negros entre seus alunos e menos de 1% entre seus docentes. Deve ser por isso que nunca ganhamos um Nobel, ao contrário dos nossos vizinhos Argentina e Chile. Até na América Latina há mais diversidade nas universidades comparando ao Brasil – o maior pais negro fora da África e um dos mais diversos e desiguais do mundo.
Quais as principais ações promovidas pela SMPIR nesses quase quatro anos?
Nossa Secretaria é nova, foi criada no governo do prefeito Fernando Haddad, e nestes poucos mais de três anos, temos muito do que nos orgulharmos. Deixará um legado para essa cidade de São Paulo que é uma das mais diversas do mundo. Seria difícil narrar aqui tudo que realizamos nesse período, mas se tivesse de eleger pelo menos três ações eu diria que, em primeiro lugar está a política de cotas que estabelecemos para o município – a reserva de 20% de todos os cargos que vão desde estagiários aos de secretários – e depois estendendo esse diálogo para o setor privado por meio da realização do Fórum Econômico São Paulo Diverso. Em segundo lugar foi o cumprimento e superação da meta que estava no plano de governo, a de formar 26 mil professores em História da África em quatro anos. Atualmente, já temos formados mais de 36 mil, cumprindo o que rege a Lei 10.639. Em terceiro lugar foi o estabelecimento da cultura de valorização da cultura negra por meio da contratação de artistas, produtores, pequenos e médios empreendedores em eventos culturais da cidade que tiveram acesso ao poder público, sendo respeitados como nunca visto na história da cidade de São Paulo.
O prefeito eleito de São Paulo, João Doria, declarou que poderá extinguir a SMPIR para cortar gastos. Como o senhor avalia esta medida?
João Doria acabou de ser eleito e não cabe a mim questionar qualquer decisão do futuro prefeito. Me diz respeito sim, como paulistano e morador desta cidade, torcer para que ele faça um bom governo. Apenas devo ressaltar que o orçamento da Secretaria da Igualdade Racial é um dos menores orçamentos entre as secretarias do município. Fazendo uma comparação, o que é gasto com a Igualdade Racial na maior cidade negra do país – uma vez que aqui vivem mais de 4 milhões de pessoas que se auto declaram afrodescendentes -, é metade, por exemplo, do que o município gasta com o Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, que acontece uma vez por ano. Isso significa que as poucas dezenas de funcionários da SMPIR perpassam o ano todo com a metade desse orçamento, cuidando, por exemplo, das políticas de igualdade racial no mercado de trabalho, como acabamos de narrar. O que me impressiona no Brasil é que, historicamente, quando se fala em cortes, os pretos, as mulheres e os trabalhadores são os primeiros a terem de pagar a conta.
Como o senhor vê a ideia do vereador eleito Fernando Holiday de acabar com o Dia da Consciência Negra e com as cotas em concursos públicos?
Sei muito pouco sobre esse garoto, apenas que ele fazia parte, há pouco tempo, daqueles que foram para rua negar a política e os políticos. De repente vejo ele um político eleito pelo DEM, antigo PFL que nasceu do PDS e ARENA – partidos descendentes das oligarquias escravocratas e de direita conservadoras que defenderam no primeiro momento a manutenção da escravidão e, em seguida, todas as ditaduras do século XX. Então, não fico surpreso com as posições desse garoto. O que me espanta mais é que a direita e os racistas desse país demoraram tantos anos para eleger um descendente dos capitães do mato para fazerem esse serviço.
Na sua visão, por que tantos negros apoiam e concordam com o discurso elitista contra as cotas e a favor da meritocracia pregado por negros como Fernando Holiday?
Eu vou começar a responder com uma frase do senador gaúcho Paulo Paim, quando fizeram a ele essa mesma indagação. “Eu até posso compreender um branco ser contra as cotas mas jamais poderia compreender que um negro seja contra as cotas”. Mas voltando a sua pergunta, o negro que é contra cotas é aquele que não tem consciência da dívida histórica e impagável que esse país tem com nossos antepassados que, durante 380 anos, construíram as riquezas que hoje são desfrutadas somente por uma elite, inclusive a riqueza da educação. É aquele que não respeita o passado nem dos seus pais nem de seus avós que saíram da dura vida da escravização e foram direto para a cozinha, a portaria e os serviços domésticos, subempregos disponíveis na nova economia que se formava no século XX. O sistema de cotas é o mínimo que esta elite excludente e racista pode fazer para reparar as atrocidades do escravismo colonial que, até hoje, tem seus reflexos em nossa sociedade.
Pode-se esperar um retrocesso nas políticas de inclusão racial em São Paulo a partir do próximo ano?
O que estamos assistindo é um retrocesso na política de inclusão no mundo, seja ela racial ou social. É só olhar o caso dos refugiados. Aqui no Brasil já estamos vivenciando isso em todas as áreas, infelizmente. No caso de São Paulo, que não é uma ilha, as forças conservadoras e retrógradas têm avançado em todas as partes.