‘Só bato em cachorro grande, do meu tamanho ou maior’ é o título do livro mais recente de Cidinha da Silva, ex-presidente do Geledés — Instituto da Mulher Negra, em homenagem a sua fundadora, a filósofa Sueli Carneiro. Cidinha parece escrever com uma pena do pássaro da morte, aquele que sombreou todo o vilarejo. Usando a linguagem (muitas vezes o arame farpado entre o povo e o poder), essa heroína mineira insurgente concatena 81 lições do que chama de “método Sueli Carneiro”. Até lê-lo, eu achava inocentemente que havia feito a declaração de amor mais porrada de 2025 com meu novo disco, “Emicida racional VL. 2 — Mesmas cores & mesmos valores”, que revisita algumas obras dos Racionais MC’s. Engano. Quando o aprendiz está pronto é que surge o mestre. Cidinha reluz numa forma de energia escura semelhante à que dá sustentação ao Universo. Minha mente passeia por seu texto traçando paralelos com Nikola Tesla e sua famosa frase: “Se quer entender os grandes movimentos do Universo, pense nos termos energia, frequência e vibração”. Senti a presença de minha finada mãe, Dona Jacira, na dura e doce como rapadura troca entre as duas mais velhas. Minha veinha diria “essa entende do riscado”.
Sueli e Cidinha são essência da cultura hip-hop; respectivamente DJ, que nos dá base, e MC, guardiã das ideias. Nem de longe isso é uma comparação. É literal. Como eu disse em “Triunfo”, nos distantes 2008, “no fim das contas fazer rima é a parte mais fácil”.
Uma vez minha amiga Capicua, rapper portuguesa, fez um lindo elogio a nosso país:
— O ambiente daqui faz com que acreditemos que toda a vida é possível.
Nunca conheci uma pessoa inteligente que não torcesse pelo Brasil. Graças à forma como artistas daqui, como Gabriel O Pensador, fazem rep (ritmo E poesia), a maneira como nossos irmãos da “Tuga” rimam mudou completamente, valorizando a própria língua daquele lado do Atlântico de maneira inédita no gênero até então. Ao criar, somos capazes de realinhar até os chacras do colonizador. Essa é a razão pela qual hoje é mais da hora fazer rep no Brasil que nos Estados Unidos.
A consolidação da ascensão da extrema direita, simbolizada pelo retorno de Trump à Presidência daquele país, produz uma esfinge que repete em loop: “Decifra-me ou devoro-te”. Sobretudo para a comunidade afro-estadunidense, acostumada a ver na imagem do amigo de Epstein o inspiracional self-made man. Dinheiro é importante, mas não é tudo. Nas últimas três décadas, a indústria do rep norte-americano visitou mais Trump que Angela Davis. Afastar-se de seus intelectuais formativos é suicídio. Citando Fabiana Cozza:
— Se a cultura fosse um iceberg, a indústria seria a ponta dele.
Precisamos globalmente voltar à base, por isso nossa DJ Sueli. Por isso Racionais MC’s. Para que a cultura hip-hop não se torne uma greve oca, cheia de gente e vazia ao mesmo tempo.
— Da ponte pra cá, antes de tudo é uma escola.
Teco da rima de um jovem que participou do projeto RAPensando a Educação no início dos anos 1990, numa São Paulo cujo secretário da pasta era Paulo Freire. Corta pra 2020, e a Letrus (de que me alegra fazer parte com minha parça Ester Duflo) se torna referência global do J-PAL/MIT, considerada a melhor tecnologia educacional do mundo pela Unesco. O Brasil tem a oportunidade de dar ao planeta outro parâmetro no uso das IAs, em que elas são potencializadoras das humanidades, não suas substitutas. Isso é cultura.
Sueli, Cidinha, Paulo Freire e os Racionais entenderam rápido o potencial pedagógico do hip-hop como construtor de autonomia. Superar o racismo é imperativo, pois só se exerce o potencial que se tem estando vivo. É hora de o hip-hop voltar às aulas. Parafraseando meu mano G-son:
— Não sou a nova escola, eu sou a nova escala.
De quantos honoris causa vocês precisam para perceber que estou falando sério?
*emicida é MC, professor investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professor convidado do Center for Latin American Studies da Universidade de Pittsburgh e doutor honoris causa em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul