Memória Lélia Gonzalez: tributo que reativa o combate ao racismo e ao sexismo

“Um dia como esse tira qualquer mágoa do coração”

Jê Ernesto

Este artigo é um texto-relato sobre o lançamento do projeto Memória “Lélia Gonzalez:[1] o feminismo negro no palco da História”, realizado ontem, 15 de julho, em São Paulo. Descrevendo os acontecimentos do evento, o protagonismo de algumas mulheres em sua organização e no seu desenrolar, procura apresentar a magnitude de dois monumentos, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, para a ação política que se quer renovada e apta para os tempos que estão por vir.

  Os lugares que se bifurcam, o acontecimento que se amplifica

Centro de São Paulo. 15 de julho de 2015. Quase 19h. Pessoas de diferentes faixas etárias, procedências e filiações políticas aglomeram-se, escrevente inclusa, no térreo do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) que transborda e transborda. O objetivo era um só: todas as atrasadas queriam ter a oportunidade de adentrar a sala onde estava sendo lançado, desde às 17h30, o Projeto Memória “Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da História”, uma iniciativa da Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh) e Brasilcap.

O tom solene e peremptório das funcionárias do CCBB, ao anunciarem que seria impossível a entrada das remanescentes, teve efeito de balde de água gelada nas aspirações do grupo, uma pequena multidão de inconformadas. – Como assim, não tem mais espaço? bradei incrédula. – Pessoal, trata-se de um evento sobre Lélia Gonzalez, gritou outra indignada ao fundo. – Eu vim de tão longe para participar do evento, que não terá segunda edição por aqui, e sou pega com uma dessas, desabafou alguém ao meu lado. E, assim, sucessivas manifestações de decepção iam se assomando, turvando o ambiente, até poucos minutos pontilhado, de forma patente, de júbilo, ansiedade, promissoras expectativas. Como que tentando procurar debelar o sentimento de culpa que tomou conta dos olhares e pensamentos, passamos a colher explicações que justificassem a “comida de bola” (eu mesma fiquei pensando com os meus botões: por que não parei com a escrita do livro, que a rigor pode esperar? Por que calculei mal o tempo de chegada até aqui?): “gente um evento como esse teria que ser feito num espaço mais amplo, aqui é muito pequeno”, cravou alguém em busca de soluções. Eu também procurei me acercar de algumas justificativas para o acontecido. Apoiando-me no expediente jornalístico, relatei: “a divulgação ampla arrastou centenas de pessoas para o CCBB que não tem capacidade para tanto. O evento foi ostensivamente divulgado: eu recebi notificações por email do CCBB, o Portal Geledés divulgou, o site CEERT, idem, o assunto circulou nas redes sociais…”.

Proporcional ao público “excedente”, uma chuva de blá, blá, blá caiu no térreo do CCBB nesse momento.

Lélia Gonzalez se faz ubíqua

Eis que no meio das queixas e desculpas, algumas esfarrapadas, do contingente desolado, uma das organizadoras do evento, Nilza Iraci, desce e nos dá um alento: “pessoal, de fato não tem como vocês subirem, o CCBB teve que disponibilizar mais uma sala, pois a primeira lotou e a segunda já não comporta mais ninguém. A solução que encontramos foi o acesso de vocês ao coquetel, momento em que será distribuído o kit Lélia Gonzalez”. Nesse momento, uma funcionária do CCBB, contrariada com a decisão, retruca lateralmente: “mas essa decisão é de vocês, da organização, não do CCBB, porque de fato não há mínimo espaço nem mesmo durante o coquetel”. Nilza Iraci mantém a promessa, afirmando para a funcionária: “não se preocupe, vamos sim arrumar um jeito para acomodar a todas durante o coquetel”. Essa virada, um novo capítulo da novela, escrito na presença de todas, foi um impulso para que o acontecimento fosse ganhando ainda mais densidade simbólica. Mediante ao anunciado, o público se mostrou inarredável.

O sentimento de alegria contagiou a todas e recuperou o domínio do território que teve na presença de Sônia Nascimento, de Geledés, um fator decisivo. Com generosa solidariedade que lhe é típica, Sônia transita pelo térreo do CCBB, um limbo para as “sem-evento”, conversa cuidadosamente com todas, reforça o comunicado de Nilza, presta especial atenção às mais velhas, convida as pessoas para se acomodarem confortavelmente, e dali não arreda… Entre o anúncio de Nilza e a previsão do coquetel, quase uma hora nos separava do momento mágico. Além da solidariedade da doutora Sônia, como carinhosamente a chamamos, fomos agraciadas com os relatos das pessoas de “dentro”, que vez por outra desciam e nos forneciam informações sobre o caminhar do evento: “a fala de Sueli, pra variar, foi ótima”, “o documentário é muito bom”…

As gentilezas da doutora Sônia, as informações prestimosas que nos chegavam fresquinhas e outras cenas ímpares criaram, naquele espaço, um evento dentro do evento. Aos poucos, todas nós sentíamos a magnânima presença de Lélia Gonzalez. De limbo das “sem-eventos”, o lugar da espera ganhou novo estatuto: instalava-se ali mais um lugar do acontecimento. Não havia mais distinção entre palco e bastidor, as fronteiras entre as de dentro e as de fora se liquefaziam, passávamos a comungar do mesmo território de rememoração. O ambiente de espera era também o de ação. O térreo se transformou, assim como as salas do segundo andar, em lugar de memória, evocando a expressão do historiador Pierre Nora; converteu-se em lugar de partilha da vida de Lélia Gonzalez, que se fez ubíqua no CCBB, com sua voz ecoando em todas as dependências.

De Lélia Gonzalez a Sueli Carneiro: a convocação para ação política

Dos vasos comunicantes entre o segundo andar e o térreo do CCBB, a conexão estendeu-se ao mezanino, onde aconteceu o coquetel e a sessão de autógrafos. Presença altiva de militantes de tempos de outrora e de agora, assiduidade de jovens pesquisadoras, intelectuais, gestoras públicas, profissionais liberais impingiu àquele espaço uma aura especial, onde se completou mais um ato de um acontecimento com altíssimo valor simbólico e político. A presença majestosa de Sueli Carneiro, autora dos textos do livro fotobiográfico que integra o kit do Projeto, autografando entusiasticamente centenas de livros é algo para ser mencionado com destaque. Vê-la escrevendo acertadas dedicatórias, exortando algumas jovens a assumirem a cena política, validando a trajetória política de tantas outras, nos fez sentir, plenamente, a vivacidade do fazer político de Lélia Gonzalez.

No livro sobre seu perfil, de minha autoria, Sueli Carneiro assinala com relevo o seu papel de herdeira que reelabora o patrimônio herdado. O evento de hoje confirma o cumprimento desse papel e aponta para a continuidade da história. Um dos atributos de Lélia Gonzalez é ter se instalado no lugar do fundamento dos fundamentos. Ao dizer isso não estou cedendo ao genesismo (pois como se costuma dizer “antes do início, há sempre um outro começo para quem procura bem”), mas, antes, apontando as antecedências de uma visada política por ela adotada. De Lélia a Sueli um arco se estabelece para permanecermos na senda de duas mulheres combatentes das desigualdades raciais e de gênero.

A noite celebrativa do 15 de julho de 2015, cheia de luz, plena de magia, já ficou na história como o dia em que Lélia Gonzalez mais uma vez conclama ao combate do racismo e do sexismo, sob a batuta de uma das suas mais brilhantes seguidoras, Sueli Carneiro. Quem lá esteve com olhos abertos e ouvidos aguçados saiu absolutamente convicta de que o evento ultrapassou seus próprios limites e semeou sementes cujos frutos serão avaliados em futuro próximo.

A frase singela com a qual inicio esse texto, publicada na timeline de Jê Ernesto, em referência ao evento, talvez nos permita ir um pouco mais fundo nos desdobramentos do lançamento de um projeto que, sob a rubrica da memória, afeta a cada uma de nós e que nos permite pensar grande. A superação do racismo e do sexismo, como aprendemos com Lélia e Sueli, nos leva, inevitavelmente a esse grande desafio. Jovem negra, estudante de Direito, engajada politicamente, Jê Ernesto viu o macro no micro. Sigamos com elas, com Lélia e Sueli, sem mágoas, conhecedoras da história como ela é e como poderá, quem sabe um dia, ser.

[1] “Filha de um ferroviário negro e de uma empregada doméstica indígena era a penúltima de 18 irmãos. Nascida em Belo Horizonte, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1942. Graduou-se em História e Filosofia e trabalhou como professora da rede pública de ensino. Fez o mestrado em comunicação social e o doutorado em antropologia política. Começou então a se dedicar à pesquisas sobre relações de gênero e etnia. Foi professora de Cultura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde chefiou o departamento de Sociologia e Política.Como professora de Ensino Médio no Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (UEG, atual UERJ), nos difíceis anos finais da década de 1960, fez de suas aulas de Filosofia espaço de resistência e crítica político-social, marcando definitivamente o pensamento e a ação de seus alunos. Ajudou a fundar instituições como o Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga e o Olodum. Sua militância em defesa da mulher negra levou-a ao Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), no qual atuou de 1985 a 1989. Foi candidata a deputada federal pelo PT, elegendo-se primeira suplente. Nas eleições seguintes, em 1986, candidatou-se a deputada estadual pelo PDT, novamente elegendo-se suplente. Seus escritos, simultaneamente permeados pelos cenários da ditadura política e da emergência dos movimentos sociais, são reveladores das múltiplas inserções e identificam sua constante preocupação em articular as lutas mais amplas da sociedade com a demanda específica dos negros e, em especial das mulheres negras”. (Fonte: Wikipedia).


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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