“Meu nome é Tilde, sou assistente social deste hospital e estou aqui pra te ajudar”, é assim que Irotilde Gonçalves, 70, apresenta-se às mulheres vítimas de estupro que atende quase todos os dias no Hospital Municipal Arthur Ribeiro de Saboya, em Jabaquara, zona sul de São Paulo.
Por Gabriela Di Bella e Gui Christ Do BBC
Paulista, nascida no interior, Tilde, como é conhecida pelos amigos e colegas, é responsável por encaminhar todos os casos de aborto legal, determinados pelo artigo 128 do Código Penal Brasileiro em situações de estupro, risco para a mãe ou feto incompatível com a vida.
Ela vive diariamente uma realidade traduzida em números pela PNA 2016 (Pesquisa Nacional do Aborto), divulgada nesta semana. Segundo os dados do estudo realizado pela Anis e o Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB), até os 40 anos pelo menos uma em cada cinco das mulheres brasileiras já fez um aborto. Ainda de acordo com a pesquisa, em 2015, nas áreas urbanas, meio milhão de brasileiras teriam abortado ilegalmente.
Para a assistente social, no entanto, os percentuais não traduzem a gravidade do problema: “Tem um milhão de abortos no Brasil, e… quem morreu? Quem conseguiu fazer um aborto com segurança mas pagando caro? Essa estatística não reflete a realidade, que é muito pior. E as clínicas particulares? E as clandestinas?”.
O jeito educado de falar, o sorriso e o jaleco com flores bordadas de Tilde contrastam com a dureza de seu trabalho. “É difícil não chorar, não pode ser que a realidade seja tão desumana.”
Hoje com 70 anos, a assistente social fez parte da primeira equipe de atendimento de aborto legal, criada em 1989, pela então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. “Antes disso sabíamos que tinham casos de estupro e de aborto mas não tínhamos para onde encaminhar.”
“Vivíamos num hiato entre a lei e a realidade e cumpríamos rigorosamente o código penal de 1940. (Mas) o Estado ainda deve muito às mulheres, porque você engravidar de um estupro é uma violência, e a mulher tem de ter direito a escolher interromper isso no serviço público.”
Na época em que a equipe de atendimento foi criada, conta Tilde, houve um forte trabalho de sensibilização com todos os funcionários, mas isso não evitou julgamentos, muito menos ameaças. “Mandavam-me cartas anônimas, livros falando que o aborto era crime, jogavam ovos na minha casa. Já me chamaram de aborteira e de assassina”, lembra. Como ficou viúva ainda jovem, encontrou no apoio dos filhos a força para continuar atendendo.
Católica, ela fala que nunca teve um conflito pessoal com o que faz.
“Ao contrário do que pensa o senso comum, meu trabalho salva vidas”, diz.
“Acompanho esse serviço em todo o país e nunca ninguém morreu, ao contrário das mulheres que têm uma gravidez indesejada e se colocam em risco. Sabemos que quando perdemos uma mulher, toda a sociedade perde, uma família perde e, normalmente, ela deixa filhos.”
A experiência dela é confirmada pela PNA: segundo a pesquisa, 67% das mulheres que fizeram aborto no ano passado já tinham filhos.
Ouvinte
A parte principal do serviço de Tilde é ouvir. “Às vezes fico uma hora, 40 minutos, o tempo que for necessário. Algumas conseguem falar, outras só choram. Todas as histórias são muito chocantes.”
Entre as que mais marcaram a assistente social são as das crianças e deficientes, muitas delas meninas que são agredidas há muito tempo, mas a família só descobre quando engravidam.
“Quando este ato resulta em gravidez é muito pior, é mais uma violência”.
Ela destaca também o forte sentimento de culpa das mulheres violentadas. Tilde diz que é comum as vítimas se perguntarem por que saíram para buscar trabalho àquela hora ou por que voltaram da igreja tão tarde.
Além disso, diz a assistente social, muitas vítimas param de comer e dormir, têm crises de ansiedade e pensamentos suicidas.
“Uma vez atendi uma mulher que tinha sido estuprada pelo amigo do filho, outra que o próprio namorado se juntou a três amigos e fingiu convidá-la para uma festa. Algumas se recuperam depois e conseguem refazer a vida, outras não. Minha função é ajudá-las.”
Tilde conta que, nos casos em que a gravidez segue normalmente, a vítima não consegue assumir o papel de mãe e o filho acaba sendo criado por uma avó ou outro parente.
Ela relembra a história de uma senhora com quem mantém contato até hoje. Uma paciente que já tinha dois filhos quando, no ínicio dos anos 1990, engravidou após um estupro – e passou por uma longa jornada entre delegacias e a justiça até encontrar o hospital Saboya.
“Ela fez medalhas para todos nós, trouxe flores, nos apelidou de anjos de branco. Essa mulher nasceu de novo, pena que esse tipo de história se repita até hoje.”
Outro grande problema narrado por Tilde é a dificuldade das mulheres de encontrar alguém de confiança para acompanhá-las. Às vezes vão ao hospital com uma amiga, em outras com a patroa, poucas chegam acompanhas de homens, conta a assistente social.
“Uma vez um pai me disse que veio lendo a Bíblia para a filha – que tinha sido vítima de estupro – e se deu conta de que aquela gravidez não tinha que acontecer”, lembra.
Religião
O conflito religioso e pessoal está presente no dia a dia de Tilde. Ela já se deparou com médicos que se negaram a realizar o procedimento alegando objeção de consciência – direito que permite aos profissionais não cumprir determinadas obrigações, em virtude de convicções de natureza religiosa, moral, humanística ou filosófica.
“As próprias mulheres, em sua maioria, consultam seu representante religioso antes de realizar o procedimento.”
No fim de novembro, no julgamento de cinco funcionários de uma clínica, o Supremo Tribunal Federal determinou que o aborto, se feito até o terceiro mês de gestação, não deve ser considerado crime. O Congresso reagiu contra a decisão criando uma comissão para avaliar o assunto. A assistente social vê a ação do Legislativo com preocupação e espera que não aconteça um retrocesso no tema.
Irotilde é enfática ao dizer que o mais importante é o respeito ao que acontece no corpo do outro e defende que o aborto seja descriminalizado no país. Como bom exemplo, ela cita a Holanda, onde a interrupção da gravidez é descriminalizada e a taxa de mortalidade materna, baixíssima.
“Emocionalmente ninguém no mundo seria favorável a um aborto, mas temos que perceber que é uma realidade, está ai, e mata mulheres. É um prejuízo para todos.”