“Minha avó era palhaço” conta a trajetória artística de Dona Maria Eliza Alves dos Reis, a primeira palhaça negra do Brasil. Veja o trailer do filme na janela acima.
Por MARIANA GABRIEL e CHRISTIANE GOMES, do Todos os Negros do mundo
Impossível não perceber, mesmo que por telefone, o orgulho e entusiasmo que Mariana Gabriel se refere a sua avó. Cada uma de minhas curiosas perguntas sobre essa pessoa fantástica que foi Dona Maria Eliza, a primeira palhaça negra do Brasil, eram respondidas com o mesmo brilho e amor.
O documentário “Minha Avó Era Palhaço!” é dirigido por Ana Minehira e Mariana Gabriel. O filme será lançado hoje, no Cine Arte do Conjunto Nacional em São Paulo.
O filme de 50 minutos tem esse nome porque, na verdade, Maria Eliza se apresentava como “Xamego”, palhaço homem, no início da década de 40 e era a grande atração do Circo Guarany.
Esse projeto é um dos resultados do prêmio Funarte Caixa Carequinha de fomento ao circo na categoria pesquisa de 2014.
No texto abaixo, escrito pela própria Mariana Gabriel e por Christiane Gomes para “O Menelick“, elas definem, melhor do que ninguém, quem foi Maria Eliza Alves dos Reis.
Dona Maria Eliza Alves era palhaço. Palhaço homem: Xamego, com“X”.
“Todo mundo quer saber
O que é o Xamego
Ninguém sabe se ele é branco
Se é mulato ou negro”
Esses eram os principais versos da música Xamego, canção que ficou famosa na década de 40 nas vozes do Rei e da Rainha do Baião, respectivamente o sanfoneiro Luiz Gonzaga e a cantora Carmélia Alves, e que anunciava cada entrada do palhaço Xamego no picadeiro. Até onde se sabe, Xamego foi uma das primeiras mulheres palhaças do Brasil. Minha avó.
Negra, pequenina, um metro e meio de muita força e coragem. Coragem essa que foi testada para enfrentar o racismo e o machismo de sua época. Nasceu na primeira década do século 20. Força tamanha que a fez enfrentar a perda de sete filhos ainda pequenos e ainda assim ter toda alegria para criar um casal de rebentos muito amados: um músico, guitarrista do cantor Roberto Carlos por 40 anos, meu tio, Aristeu Alves dos Reis, e uma jornalista, Daise Alves dos Reis Gabriel, minha mãe.
“Na vida, niña, o que vale é saúde. O resto é bolacha!”
Esse foi um dos ensinamentos de Maria-Xamego, tanto para minha mãe, quanto para mim, misturando na frase o espanhol de sua mãe, a bisavó Brígida, que nasceu no Uruguai.
O CIRCO GUARANI
Na verdade, quando cheguei ao mundo já não existia mais o Circo Guarani, de propriedade da minha família. O “maior circo do Brasil”, como anunciavam os alto-falantes nas cidades por onde ele passava. Minha mãe já não fazia força de cabelo e meu tio Aristeu não fazia acrobacias, nem dava saltos mortais e flip-flap. Apesar disso, todo esse universo circense sempre esteve presente nas histórias e lembranças dos meus chegados.
Meu bisavô João Alves, negro livre, embora filho de escrava, dono do Circo Guarani, nasceu em 1873, dois anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, que data de 28 de setembro de 1871 e que libertava os bebês das escravas, a partir desta data. Só quinze anos depois é que viria a Lei Áurea: em 13 de maio de 1988. Não sabemos ao certo em que momento ele comprou o circo ou como a história se deu. O fato é que foi um grande empresário até seus 70 anos de idade, mesmo passando pelas duas grandes guerras mundiais.
Minha avó me encantava com o orgulho da sua infância, época áurea do Circo Guarani. Nascida em 1909 e alfabetizada por professor particular, um luxo impensável para a época, ela contava:
“Niña, meu pai fretava um trem, com todos os vagões, para levar artistas, equipamentos e animais. E a gente viajava pelo Brasil inteiro”.
Eu visualizava os números de trapézio, palhaço, animais adestrados, mágicos e malabaristas. O circo tinha leão, elefante, cobras, cachorros, gatos e o grande amigo da minha avó: um chimpanzé chamado Pescador.
“Aquele macaco era terrível, ele se fazia de morto para caçar os passarinhos e até tirava piolho da minha cabeça e preparava um remedinho, mascando umas ervinhas, que passava nos meus machucados de criança levada. E curava”.
Aquilo era o máximo. Havia também as peças teatrais. Era a época do circo-teatro, onde eram feitas grandes encenações como Paixão de Cristo e Morro dos Ventos Uivantes. Em alguns casos era difícil imaginar como encenavam a morte de Jesus Cristo em pleno picadeiro.
“E éramos nós mesmos que fazíamos todas as roupas, os cenários e até a coroa de espinhos”.
E minha avó ensinava: a cena dos milagres era feita com uma simples caixinha de papelão: de um lado continha folhas secas, do outro, uvas. E um cordão imperceptível abria a caixa, que virava, fazendo todo mundo arregalar os olhos na plateia.
Esse era um período anterior à televisão. O circo era o grande divertimento das pessoas e concentrava o que hoje seriam shows de música, teatro e cinema.
No Circo Guarani se apresentavam famosas famílias circenses como os Temperani, dos grandes pilotos do Globo da Morte, e os Seyssel, dos palhaços Arrelia e Pimentinha, dupla que ficaria famosa na televisão anos depois. A grande atração do circo era Ondina, a Mulher Cobra, acrobata mãe de Oscarito, que se tornaria, na década de 40, um dos maiores nomes do cinema da Atlântida, ao lado de Grande Otelo. Sobre ela, vovó detalhava:
“Niña, a Ondina era uma contorcionista que lembrava uma cobra no picadeiro, nem parecia que tinha ossos”.
Havia também um sanfoneiro que fazia muito sucesso com suas músicas, vestimentas e sandálias de couro: Luiz Gonzaga. A música A Feira de Caruaru punha a plateia abaixo – todos sabiam a letra.
As arquibancadas também balançavam quando uma dupla caipira famosa cantava O Rio de Piracicaba. Eram os jovens, elegantes e afinadíssimos Tonico e Tinoco. A casa ficava cheia e a praça se agitava, quando o carro de som saía pelas ruas anunciando a atração do próximo fim de semana: a Caravana do Peru que Fala, comandada pelo jovem radialista Silvio Santos, trazendo os cômicos Ronald Golias, Manoel de Nobrega e sua trupe.
“Era um alvoroço esse Peru que Fala. Niña, as moças do lugar que eram suas fãs do programa de rádio, corriam para comprar ingresso e sentar na primeira fileira das cadeiras e muitas iam embora, se ele não ficasse até o fim do espetáculo”.
Aliás, no início da era do Rádio, em 1929, minha avó e sua irmã, Tia Ifigênia, a Tita, tentaram a carreira de cantoras. Passaram um tempo no Rio de Janeiro investindo no sonho e ficaram na casa do Tio Benjamin de Oliveira, um dos maiores palhaços do Brasil, e o primeiro palhaço negro de que se tem notícia. Uma figura forte, presente no cenário artístico nacional e que abriu campo para os futuros artistas afrodescendentes.
Vó Eliza e a Tia Tita cantaram na Rádio Nacional, onde conheceram César Ladeira, Hebe Camargo que fez sucesso na época como cantora; e Dercy Gonçalves, festejada no teatro, cinema e televisão.
“Era o Cesar Ladeira quem escolhia os artistas que participariam do seu conhecido programa na Rádio Nacional. A Hebe Camargo era novinha e usava umas tranças compridas. E a Dercy Goncalves já era muito engraçada”.
Alguns anos depois, com o casamento da sobrinha Noemia, com Genésio Arruda, um dos maiores nomes do teatro brasileiro, minha avó e minha tia acabaram fazendo parte de sua caravana. Genésio Arruda chegava nas cidades com o seu carro amarelo, sua banda e seu tipo caipira (um precursor de Mazzaropi) fazendo enorme sucesso. Elas viajaram, principalmente, para o sul do país ainda trabalhando como cantoras. Na época eram conhecidas como Irmãs Alves e eram muito aplaudidas quando cantavam Tiptiptim.
Minha avó recordava, cantando e dançando, com seus olhos brilhantes, como se estivesse no palco de novo:
“Tiptiptim…tiptim
Tiptiptom…tiptom…
Sempre que amanhece junto em sua janela
Canto essa canção”.
E XAMEGO NASCE….
Em 1942, elas voltaram para São Paulo e minha avó se casou com o Avô Eurico. Um homem apaixonado, que fugiu com o circo. Nesse período meu tio-avô, Tio Toninho, palhaço Gostoso, que era a grande estrela do Circo Guarani, teve um problema sério de saúde: uma doença degenerativa que o fez amputar as duas pernas. Da necessidade de se ter um palhaço substituto, nasceu o Xamego. E o que no princípio era um papel provisório acabou durando 50 anos.
Não foi fácil. Mulheres não se vestiam de palhaço na época. A ideia de rir de uma mulher – difícil de aceitar ainda na nossa sociedade atual – não agradava naqueles tempos. Foi preciso que minha avó convencesse meu bisavô. E de um jeito tradicional de circo, com o famoso “faz me rir”. Minha avó contava que vestiu uma roupa engraçada, soltou seu cabelo crespo que ficava bem armado e colocou um chapeuzinho bem pequenino na cabeça. Engraçada que era, conseguiu fazer com que meu bisavô turrão se divertisse. E o palhaço Xamego ganhou corpo!
E O PALHAÇO O QUE É?
LADRÃO DE MULHER!
O Xamego tinha participação em quase todos os números: na entrada com o parceiro, apresentando os filhos acrobatas, os irmãos Alves, trabalhando nas comédias e entrando no número dos malabaristas para fazer truques errados.
O seu tipo principal era matreiro e gozador, o oposto do parceiro, meu avô, que fazia a linha inteligente, séria, mas que sempre caía nas armadilhas do Xamego. E isso encantava muito as mulheres da plateia. E havia muitas apaixonadas pelo Xamego. No final do espetáculo, elas esperavam, queriam vê-lo sem maquiagem. Minha mãe dizia ainda que foram várias as vezes que recebeu bilhetinhos para serem entregues para ele. Imagina!
Normalmente o Circo ficava em temporada nas praças, nome dado aos locais onde se apresentavam. E só no último dia de espetáculo que o mistério era desvendado: minha avó tirava a cabeleira e se apresentava como mulher. Era uma “choradeira” das fãs apaixonadas.
O SEIO DO PALHAÇO
Muitos registros do Circo Guarani foram perdidos. Numa briga de família, minha tia-avó queimou fotos e documentos. Recentemente, em busca de mais detalhes da nossa história encontramos um livro chamado Terceiro Sinal, de autoria de Dirce Militello. Lá, há um capítulo chamado O palhaço que conta as impressões da escritora sobre o Circo da minha família. E há um momento muito bonito em que ela diz ter ficado fascinada ao ver o Xamego, ainda maquiado, num intervalo de cena, amamentando uma criança: meu tio Aristeu. Sobre este episódio:
“A foto que não foi batida, que ficou dentro dos olhos e ainda vejo quando rebusco dentro de mim nos meus velhos guardados. O palhaço amamentando o filho que chorava! No camarim, o menino chorava, ela o amamentava mesmo sem tirar a maquiagem e trocar de roupa. Lá fora muita gente esperava, querendo conhecer o simpático palhaço, principalmente as moças. Engraçado como as moças se apaixonam pelos palhaços, mesmo sem conhecer o rosto… O rosto é que desperta mais atenção primeiro, talvez a curiosidade por saber quem está por trás daquela maquiagem! ou mesmo pela necessidade de sorrir!”.
XAMEGO EM MIM
Na minha primeira festa de Halloween da escola, eu tinha dois anos, era 1983, minha avó foi quem me vestiu, me maquiou, me preparou para o evento. Ela fez o meu chapéu de bruxa com cartolina cor de rosa e um nariz assustador. Tão horroroso, que eu não lembro do que era feito. Ela segurava meu rosto, fascinada, me maquiando para aquela apresentação. Lembro exatamente daquele olhar. Na escola, as pessoas se assustaram. No meio de meninas arrumadas, princesas brancas e monstros que mais pareciam príncipes, estava eu, a bruxa negra. Uma bruxa de verdade.
Entendi aquilo como arte. E que quando se é bruxa, se é bruxa. Tem a ver com fé cênica e até com a coerência com que se deve levar a vida, no meu modo de ver. Tenho para mim que naquele momento entendi um pouco do fascínio que é atuar e de ser o que se quiser ser. Um universo de possibilidades se abriu. Magia pura. Foi por isso que virei a palhaça Birota.
Faz sete anos que minha avó faleceu. Faria 105 primaveras, em 2014. Não a vi vestida de Xamego pessoalmente, mas posso dizer que sua alegria e seu jeito de ser contagiante, onde o riso estava presente nos momentos mais difíceis, fizeram da minha vida e de todos meus amigos e vizinhos que conviveram com ela, mais leve. Ela nos levou a muitos momentos de alegria. Na famosa e tradicional feirinha da Pompéia (bairro da capital paulista) ela era muito esperada, pois sempre fazia uma grande roda, para dançar e cantar.
”Como é, niña?, ela dizia pra mim, como quem quisesse dizer “não vai dançar também?”.
Já doente no hospital, ela fez um rap para um enfermeiro, que entrou cantando de madrugada:
“A velhinha bonitinha
Vai agora levantar.
Ela esta doentinha.
E vai ter de se curar”.
Como minha avó sempre gostou de uma rima, a resposta foi imediata, surpreendendo ao enfermeiro, que era um jovem de quase dois metros de altura e que tinha uma voz maravilhosa.
“Meu menino bonitinho,
Você pode me ajudar
Vai tirar o meu sanguinho
E eu vou logo melhorar”.
Essa era Dona Eliza. Minha avó.
Há cinco anos que atuo como palhaça. Um lugar de altruísmo, no sentido de ser generosa com as pessoas, distribuindo alegria. Uma possibilidade de ser livre para dizer o que se pensa, para sentir o que se quer, livre das regras sociais e preconceitos. Um lugar combativo, de questionamento de injustiças e de reflexão coletiva. Um lugar que me orgulho muito de ocupar.
Acho que entendi seu recado, minha avó. Está no meu sangue. Também tenho serragem nas veias. Percebo que tenho um Xamego em mim.
Pacto selado.
Respeitável público, Salve o Xamego!
Via O Menelick
MARIANA GABRIEL é cineasta pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e jornalista da ESPN Brasil.
CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela USP. Atua como coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilu Oba de Min, na cidade de São Paulo.