Miscigenação não leva à democracia racial, diz sociólogo

Fonte: BBC Brasil

A miscigenação no Brasil não leva à democracia racial porque, na prática, não cria uma categoria homogênea de mestiços, mas, sim, uma hierarquia de subcategorias pela qual quanto mais perto um indivíduo estiver da “matriz branca”, maiores são suas chances de inclusão social, afirma o sociólogo Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife.

 

 

“A miscigenação não é construtora de homogeneidade, ao contrário do que alguns acreditaram durante décadas e uns ainda acreditam. Na verdade, você cria uma espécie de graduação de cor e de características físicas, e a partir disso você diferencia os grupos”, disse Sales, autor da polêmica tese de doutorado “Raça e Justiça – O mito da democracia racial e o racismo institucional no fluxo de Justiça”.

 

Por outro lado, argumenta, o conceito de miscigenação no Brasil é usado para validar o mito da democracia racial, tirando dos movimentos negros os argumentos para denunciar o racismo. Mais do que isso: em uma sociedade em que, em tese, não existe raça, racistas são aqueles que falam do racismo.

 

“É como se o movimento negro fosse racista porque traz o debate para a esfera pública”, disse o sociólogo à BBC Brasil.

‘Complexo de Tia Anastácia’

 

Na visão de Ronaldo Sales, a harmonia racial é aparente, sustentada pelo que chama de Complexo de Tia Anastácia, a síndrome do negro que só é aceito enquanto fica no lugar que lhe é reservado.

 

“Essa cordialidade é uma forma de acomodação do conflito. É o que chamei de complexo de Tia Anastácia, uma integração subordinada que faz com que o negro seja ‘quase’ ou ‘como se fosse’ da família. Quando a empregada quer sair da cozinha para a sala, é chamada de ingrata.”

 

Segundo Sales, quando a idéia de democracia racial começou a se consolidar, nos anos 30 – até se estabelecer definitivamente com a ditadura – deixou de se falar em relações raciais brasileiras. Desde então, o racismo é considerado uma prática individual de alguém que, por opção ou patologia, não se enquadra na realidade da mestiçagem.

 

“O racismo é um sistema de dominação social: não está apenas nas relações interpessoais, mas sobretudo nas práticas institucionais: na ação da polícia, do Estado, das instituições públicas e privadas, no mercado de trabalho, nos meios de informação, nas escolas”, diz o sociólogo.

 

“O sistema jurídico brasileiro dispensa aos negros um tratamento que, das ruas às delegacias de polícia e aos tribunais de justiça, viola a presunção de inocência, invertendo o ônus da prova, tornando os negros ‘culpados até prova em contrário’, e obrigando-os a constantemente provar sua inocência”, disse Sales, em artigo na revista Tempo Social, da Universidade de São Paulo.

 

Raça?

 

Defensor das políticas de ação afirmativa, o sociólogo diz também que o discurso da miscigenação como “salvação nacional” mina a capacidade de mobilização dos movimentos negros por lhes negar uma identidade como grupo.

 

“Eles não são negros, são morenos, mestiços, tanto quanto os outros. Fica difícil se diferenciarem e se organizarem.”

 

Para o sociólogo, os estudos genéticos que questionam o conceito de raça são secundários diante de uma realidade social que continua a discriminar negros.

 

A historiadora Isabel Lustosa, da Fundação Casa Rui Barbosa, concorda que a cor da pele influi na forma de inclusão social, embora acredite que o preconceito tenha como alvo o pobre de uma forma geral.

 

“Quanto mais claro, mais bem-tratado você é, mas acho que quanto mais rico, também”, diz Lustosa.

 

Para a historiadora, porém, o mito da democracia racial ainda serve como modelo social a ser projetado.

 

“Temos de incentivar uma democracia racial de fato a partir do ideal, em vez de movimentos que invistam no rancor racial”, diz Lustosa, que é contra as cotas para afrodescendentes.

 

Já para Sales, esperar que essas distorções se corrijam naturalmente é uma estratégia tentada e fracassada.

 

“A mera negação da existência do problema não ajudou a resolvê-lo. Evitar o confronto por temor do conflito racial, que sempre permeou o discurso das elites brasileiras, não ajudou a resolver a questão”, concluiu o historiador.

 

Matéria original

 

Para saber mais sobre democracia racial veja os seguintes artigos:

http://www.geledes.org.br/abdias-do-nascimento/democracia-racial-mito-ou-realidade.html

http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/notas-sobre-os-desafios-para-o-brasil.html

http://www.geledes.org.br/em-debate/racistas-sao-os-outros.html

http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/ha-um-racismo-indicioso-que-exige-luta-dos-movimentos-sociais-de-uma-maneira-que-nao-se-pensava-antes-diz-boaventura-santos.html

http://www.geledes.org.br/em-debate/cozidao.html

http://www.geledes.org.br/em-debate/justica-social-e-justica-historica.html

 

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