Cozidão

Fonte: Marjorierodrigues.wordpress.com

Por Marjorie  Rodrigues


Então que um dos mocinhos do CQC, Danilo Gentilli, conseguiu reunir um monte de clichês racistas em um texto só. Até aí, o mundo se move e o céu é azul, né? Danilo só está se mostrando bom aluno em “preconceito descolado”, prática extremamente comum no humor brasileiro – e, como discutíamos dias atrás, exercida com maestria pelo chefe dele, Marcelo Tas. Não há novidade aí.

Entretanto, o texto dele serve de ilustração para uma porrada de coisas que eu já critiquei aqui. Enquanto passava o olho pelos parágrafos, ia lembrando de vários dos meus posts antigos e pensando: “tá vendo? Era disso que eu estava falando!”. Então, se não se importam, vou fazer um cozidão de links aqui.

Para começar, o texto do Danilo exemplifica o que eu quis dizer, em maio, com “subjugação pelo riso”. Cada vez mais, enxergo o humor como uma das ferramentas mais poderosas de subjugação e de silenciamento. Não sei se é a mais poderosa de todas, mas o humor sem dúvida tem um atributo único: ele torna-se sério justamente porque não foi feito para ser levado a sério.

Me explico: com a piada, podemos dizer coisas que não teríamos coragem de falar seriamente. Podemos, assim, usar o humor como uma muleta. Desta maneira, idéias discriminatórias são transmitidas e reforçadas através das gerações – mas, quando alguém reclama, o autor da piada sempre pode se justificar, dizendo: “eeei, é apenas uma piada”. Sempre se pode esconder-se atrás da (pretensa) falta de seriedade e falta de relevância do humor. Mas o fato é que piadas são manifestações culturais como quaisquer outras. São um grande indicativo de como uma sociedade pensa e se enxerga. Logo, também elas podem (e devem) ser analisadas sociologicamente.

Também vejo no texto do Gentilli mais uma tentativa de retirar as coisas de seu contexto. O histórico escravocrata do Brasil só é relembrado no texto quando convém ao autor. Olha o tamanho do malabarismo retórico: Gentilli enxerga o cara que se afirma negro, que diz ter orgulho da sua cor, como um idiota – afinal, quem inventou o conceito de raça foram os brancos que o escravizaram.

Mas eu duvido que Gentilli seja burro a ponto de não compreender que um cara que se orgulha de ser negro está apenas reagindo a este passado de escravidão e a todas as mensagens que estimulam o negro a ter baixa auto-estima (entre as quais as piadas de Gentilli se incluem).

A intenção de Gentilli, portanto, é a mesma dos alunos da Anhembi-Morumbi que aparecem na primeira parte do documentário “café com leite ou água e azeite?” (o doc, aliás, derruba todo e qualquer argumento do humorista). A carta da “democracia racial” não é retirada da manga para uma celebração. O discurso bonitinho da “caixa de lápis de cor” só é usado para impedir que os negros se afirmem como negros. Afinal, se eles não se reconhecerem como um grupo com uma situação específica, obviamente não vão se posicionar politicamente contra esta situação específica.

Veja que o Danilo também sequestra o discurso antropológico, dizendo que “raça não existe”. Pois é, não existe mesmo. Mas isso não quer dizer que a idéia de que ela exista tenha se dissipado do senso comum. Tampouco quer dizer que não existam pessoas que ainda acreditam que há raças superiores a outras. E muito menos quer dizer que não existam discriminações com base na “raça”. Não é novidade para ninguém que os negros levam desvantagem em termos de renda, de escolaridade, empregabilidade e por aí vai.

Logo, negar que a distinção de raça ainda importe, como se a gente JÁ VIVESSE num mundo de caixa de lápis de cor, é de uma ingenuidade gigantesca. Essa negação só pode mesmo ser feita por um cara branco, que não sofre na pele os efeitos do racismo. Como, para ele, cor da pele nunca foi um impeditivo de nada, então dá para negar que isso tenha importância. Queria ver se ele fosse negro. Aliás, cadê os humoristas negros do CQC? Já sabemos que Danilo não faria parte da trupe se fosse mulher. E se fosse negro?

 

Matéria original: Cozidão

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