Mobilidade urbana a caminho do caos

Apenas 4,2% circulam de metrô e 1,8% nos trens urbanos, prova do vexame brasileiro no transporte

Às vésperas do início oficial da campanha às prefeituras, a Confederação Nacional do Transporte (CNT) apresentou pesquisa tão reveladora quanto preocupante sobre a mobilidade urbana no Brasil. A consulta à população, entre abril e maio deste ano, confirmou o que a intuição sinalizava: vai ladeira abaixo a preferência pelos meios coletivos. De 2017 a 2024, a proporção de brasileiros que passaram a utilizar transporte individual, incluindo veículos próprios e serviços por aplicativos, saiu de 50,2% para 68,3%, enquanto os deslocamentos em coletivos despencaram de 49,8% para 31,7%. É uma lástima para as condições de tráfego, a viabilidade das metrópoles, para o meio ambiente e para a vida humana.

O Brasil escolheu privilegiar o modelo rodoviário. Fez vista grossa à expansão do transporte clandestino. E preferiu não se importar com a péssima qualidade do sistema público. A tríade deu na escalada das alternativas particulares: da compra de motos e carros próprios à viralização das plataformas de transporte por aplicativo. São caminhos que se apresentam como solução, mas, em verdade, pavimentam o caos. Alerta o estudo: “Iniciada na pandemia, a redução na demanda de passageiros no sistema de transporte coletivo não terá sua inércia revertida sem mudanças estruturais. Isso contribui bastante para o cenário de precarização do serviço, no qual a forma de se deslocar nas cidades caminha em direção a insustentabilidade”.

Engarrafamento nas imediações do Maracanã, na Zona Norte do Rio — Foto: Fabiano Rocha/Agência O Globo

Qualquer pessoa que circula por grandes cidades brasileiras percebe a inviabilidade do trânsito. Percursos curtos vencidos em longos períodos. Perdem-se tempo, saúde, qualidade de vida, paciência. Aumentam o calor, os buzinaços, o estresse, os acidentes, a violência. Motoristas e passageiros à beira de um ataque de nervos fazem multiplicar os episódios de descontrole, agressão e morte. Não faz um mês, a professora Diana Campos Lopes foi agredida por um casal e arrastada por um carro, na Ilha do Governador, Zona Norte carioca, depois de uma briga de trânsito. Noutra desavença, em meados de junho, um idoso de 71 anos foi esbofeteado por outro motorista, quando levava o neto à escola. Situação semelhante, em abril, em São Paulo, deixou um aposentado com fraturas no maxilar e no assoalho da órbita direita.

A violência no trânsito é uma mazela brasileira que tem se agravado. Estudo do Ipea mostrou que, de 2010 a 2019, cerca de 392 mil pessoas morreram em acidentes de transportes terrestres, incluindo atropelamentos e ocorrências com bicicletas, motos, automóveis, ônibus e caminhões, entre outros. Foi um aumento de 13,5% em comparação à década anterior. No início da semana, a Justiça de São Paulo tornou réu o empresário Igor Ferreira Sauceda por homicídio doloso triplamente qualificado. Ele perseguiu, atropelou e matou o motociclista Pedro Kaique, de 21 anos, que avariara o retrovisor de seu Porsche numa colisão.

O estudo da CNT destacou, sobretudo, a troca dos ônibus pelos meios individuais. Desde 2017, caiu de 45,2% para 30,9% a proporção dos que utilizam o modal. Os coletivos perderam espaço para carro próprio, de 22,2% para 29,6% dos entrevistados; aplicativos, de 1% para 11,1%; moto própria, de 5,1% para 10,9%. Os deslocamentos a pé mantiveram-se estáveis, em torno de 21,6%. Apenas 4,2% circulam de metrô e 1,8% nos trens urbanos, prova do vexame brasileiro no transporte sobre trilhos.

A pandemia da Covid-19 afetou intensamente o setor de transportes, em razão das recomendações de isolamento, das restrições a aglomerações, do impulso ao trabalho remoto. Mas a insatisfação com o sistema público é mais antiga. Na pesquisa CNT, usuários listaram os movimentos que levaram a substituir os ônibus por outros modais. O primeiro deles é a falta de conforto, citada por 28,7%. Na sequência: falta de flexibilidade tanto em rotas quanto em horários (20,7%); alto preço da passagem (11,8%); insegurança (11,4%); atrasos (10,2%). Em resumo, o serviço é de baixíssima qualidade. O Rio de Janeiro firmou em 2014 um acordo para climatizar 100% da frota em dois anos. Uma década depois, cariocas ainda são submetidos à sensação térmica de 60 oC nos dias insuportáveis do novo normal do clima dentro de coletivos sem ar-condicionado.

Dos usuários que desistiram dos ônibus, um em quatro (26,6%) dizem que nada os faria voltar a usar o modal. Um em cinco consideram retornar se o valor da tarifa caísse, outros tantos se conforto ou rapidez aumentassem. Enquanto isso, desfrutam a rapidez, a flexibilidade, o conforto e a facilidade em acessar o transporte por aplicativo, que também cresceu no rastro da crise do mercado de trabalho. As autoridades tardam, os cidadãos improvisam, as cidades se inviabilizam. Que candidatos e eleitores corram para tratar de mais essa urgência.

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