Morte de Marielle desmascarou cultura racista

Em 14 de março, quando a vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, foi assassinada no centro da cidade, sua morte mexeu com todo o mundo.

Manifestantes tomaram as ruas de Nova York, Paris, Buenos Aires e em outros tantos lugares, empenhados em continuar a luta de Franco contra o racismo, pobreza, desigualdade e violência.

Eleita em 2016 após trabalhar dez anos na Comissão de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Franco tinha orgulho de ser uma mulher lésbica e negra, nascida em um dos bairros mais pobres da cidade, em uma favela. Ela usava seu poder oficial – o seu “mandato coletivo”, como ela dizia – para manter o governo conservador do estado atualizado sobre sua população marginalizada.

Franco era particularmente crítica às ineficazes respostas do governo à quantidade de tiroteios policiais nas favelas mais negras do Rio de Janeiro. Os ativistas locais consideram essas mortes um “genocídio à população negra”.

Como uma advogada brasileira e negra, eu posso ver que o assassinato de Franco – reconhecido como crime político que ainda permanece sem solução – rompeu com o perigoso silêncio que cerceava o assunto de raças no Brasil.

Essa mudança parece estar deixando alguns poderosos insatisfeitos. Em 9 de abril, Carlos Alexandre Pereira Maria, assessor do vereador carioca Marcello Siciliano (PHS), também foi assassinado. Na ocasião, Siciliano, seu chefe, havia recentemente prestado depoimento à polícia a respeito da investigação da morte de Franco.

Algumas testemunhas dizem que os atiradores que mataram Pereira Maria, que também é negro, alegaram que ele deveria “calar a boca”.

A história racista do Brasil
O Brasil, país em que 54% da população é negra, tem a fama de ser uma “democracia racial” – uma sociedade tão diversa que o racismo não seria nem capaz de existir.

Isso é um mito.

Os brasileiros negros ganham, em média, 57% menos do que os brancos. Eles compõem 64% da população carcerária. 71% do Congresso do país é formado por brancos.

O racismo remonta há séculos. O país não foi somente um império colonial de escravos – na verdade, foi a última nação do hemisfério ocidental a abolir a escravatura, em 1888. Antes disso, o código penal brasileiro impunha severa punição aos escravos, incluindo até execução.

Quando, finalmente, os afro-brasileiros adquiriram direitos legais, em 1888, o governo não ofereceu reparação ou ajuda financeira a essas pessoas, mesmo após 450 anos de servidão.

Durante a década de 1910, sociedades eugênicas surgiram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Inspiradas na pseudociência racista de norte-americanos e ingleses, esses grupos estimularam a criação de um movimento nacional para “aperfeiçoar a raça humana”, limpando o sangue “indesejável” do Brasil.

A população negra era o principal grupo que os eugênicos propunham segregar da sociedade, barrando a entrada deles no país ou julgando-os com “mentalmente defeituosos”.

Os alicerces racistas do movimento eugenista justificariam as práticas discriminatórias que aconteceram no Brasil nas décadas seguintes. O governo proibiu a capoeira, uma arte marcial e dança afro-brasileira, até a década de 1950. Também foi tornado ilegal a vagabundagem, o que criminalizou diversos moradores de rua e negros desempregados.

MANIFESTANTES DURANTE ATO POR MARIELLE FRANCO (FOTO: ROMERITO PONTES/ FLICKR)

Esforços para a igualdade
O Brasil deu início à sua primeira política anti-discriminatória em 1951, quando proibiu empresas de não atenderem clientes com base em sua raça, algo que era comum na época.

Quatro décadas depois, em 1989, o deputado negro Carlos Alberto de Oliveira impulsionou uma legislação mais rígida que punia as práticas comerciais discriminatórias. Também ampliou as proteções legais para pessoas com base em etnia, religião e nacionalidade.

O governo brasileiro buscou outras tentativas para promover a igualdade racial. Exemplo disso foi uma lei em 2010, destinada a reparar os erros advindos da escravidão. Hoje, as universidades do país têm cotas ou pontuações para candidatos negros e o governo também se propõe a recrutar pessoas negras para vagas no setor público.

Mas o viés de raça ainda permanece potente. Uma pesquisa de 1988 realizada em São Paulo, a maior cidade em termos de povoamento no país, descobriu que 97% dos entrevistados disseram não ser preconceituosos, mas 98% afirmaram que conheciam alguém que era.

Esse dado impossível inspirou a historiadora Lilia Moritz Schwarcz a cunhar o célebre ditado “todo brasileiro parece se sentir como uma ‘ilha de democracia racial’, cercado de racistas por todos os lados”.

Em 1995, em outra pesquisa, 89% dos entrevistados afirmaram acreditar na existência de um viés racial no Brasil. Somente 10% afirmou ter opiniões racistas no mundo. Os resultados foram similares em 2009.

Racismo letal
Esse é o “racismo à brasileira”. A raça ainda é um assunto tabu. No entanto, Marielle Franco expôs em seu trabalho como a cor de pele impacta drasticamente na segurança do brasileiro.

Em todo o país, 71% das 60 mil pessoas assassinadas no Brasil em 2017 era negras, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Os jovens negros das favelas mais pobres do Rio de Janeiro têm muito mais chances de serem mortos pela polícia. De acordo com um relatório da Anistia Internacional, 79% dos 1.275 assassinatos registrados por policiais no Rio entre 2010 a 2013 atingiram pessoas negras.

As mulheres negras também vivem em um mundo mais perigoso do que as mulheres brancas. O número de brasileiras negras assassinadas aumentou 54% entre 2003 a 2013, apesar de uma lei contra a violência doméstica ter sido sancionada em 2006 e ter sido creditada por uma redução de 10% na violência contra as mulheres brancas.

Já era a “democracia racial”. Em termos puramente legais, os brasileiros negros são iguais aos brancos. Porém, em termos econômicos, políticos e de justiça criminal, as evidências confirmam que não.

Quebrando o tabu
Ainda assim, o mito da democracia racial permaneceu.

O principal culpado, em minha opinião, é o enfoque míope do país apenas em classe. Os políticos e acadêmicos brasileiros costumam apontar para a pobreza e a desigualdade econômica como os principais problemas sociais do Brasil.

O principal debate de classes ignora raça, gênero e outros fatores importantes que impactam a vida no Brasil. Ignora o fato de que a maioria das pessoas que enfrentam problemas relacionados à pobreza – como violência entre gangues, insegurança alimentar, desemprego, acesso limitado à educação e falta de moradia – também são negras.

O debate predominante sobre a classe ignora raça, gênero e outros fatores salientes que impactam a vida no Brasil. Ela ignora o fato de que a maioria das pessoas que enfrentam problemas relacionados à pobreza, como violência de gangues, insegurança alimentar, desemprego, acesso limitado à educação e falta de moradia, também é negra.

Na minha experiência, a forte ênfase brasileira em mobilidade econômica também contribui para o racismo. Assim como nos Estados Unidos, muitos brasileiros acreditam que eles vivem em uma meritocracia. Quando pessoas negras sofrem e enfrentam dificuldades, muitos brancos irão pensar que eles só não estão se esforçando o suficiente.

O atual presidente do Brasil, o conservador Michel Temer, fez muito pouco para promover a equidade racial. Para ser sincera, fez o oposto.

Temer assumiu o governo em 2016 após um controverso impeachment à política de esquerda Dilma Rousseff. Um de seus primeiros atos como presidente foi de extinguir o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. E depois ele formou um gabinete totalmente masculino e branco.

Em 6 de abril, o governo de Temer revogou a lei de 1900 e 2000 que havia reconhecido a necessidade de se proteger a cultura e história dos povos afro-brasileiros e indígenas.

Isso, de certa forma, mostra como as estruturas brasileiras de opressão permanecessem invisíveis, extramamente incontestadas e – para as pessoas brancas, pelo menos – fáceis de serem ignoradas.

Marielle Franco falava abertamente sobre raça, violência e gênero. Talvez tenha sido isso que a tenha feito ser assassinada.

Porém, em morte, a mensagem de igualdade de Franco só tem ficado maior.

(FOTO: GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO)

* Ana Míria dos Santos Carvalho Carinhanha é advogada e doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O texto original foi publicado em inglês no portal The Conversation

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