Musas Negras: raça, gênero e classe na vida de Gilka da Costa Machado

FONTEPor Marina Vieira de Carvalho, enviado para o Portal Geledés

Em 2018 assistimos ao florescer da maior campanha popular para eleição da primeira mulher negra como imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL): Conceição Evaristo. Porém, os imortais desprezaram quase que completamente tal campanha, pois a premiada e consagrada escritora recebeu apenas um voto. Essa suposta indiferença tem explicação histórica: é um comportamento característico da tradição racista, patriarcal e aristocrática dos cânones literários moderno-coloniais.

As regras que legitimam a produção de conhecimento são, até hoje, eurocentradas, excluindo os saberes que não se encaixam neste padrão. Isto faz com que um país de maioria negra como o Brasil mantenha esta ausência de escritoras negras na ABL e, com isso, o reconhecimento de seus saberes, de suas escrevivências. Não que nós, escritoras afro-diaspóricas, deixemos nos silenciar. Mulheres negras, ameaçadoramente brilhantes, perturbaram e perturbam a (des)ordem do patriarcado colonizador que institui também as regras de produção do conhecimento considerado legítimo. Este é o caso da escritora afro-brasileira que tenho o prazer de apresentar no texto de hoje: Gilka da Costa Machado (1893-1980). 

Gilka Machado. O Malho, 26 de novembro de 1936. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Apesar de ter sido embranquecida com o tempo, assim como aconteceu com o escritor Machado de Assis, fundador desta mesma academia, Gilka enfrentou o entrecruzamento das opressões de raça, gênero e classe por ousar ser uma mulher de letras em pleno contexto pós-abolicionista e, ainda, de letras eróticas e feministas. Esse mesmo entrecruzamento de opressões fez com que a poeta deixasse de entrar para a história do Brasil como a primeira mulher a ser premiada pela ABL, em 1920. Pelo reconhecimento e legitimação da tradição dos escritos e das escritoras negras no Brasil e no mundo, este texto se re-apresenta. 

Natural dos subúrbios do Rio de Janeiro, Gilka da Costa Machado nasceu em 1893. As culturas afro-diaspóricas estiveram presentes em sua vida desde a infância. Seu avô materno, Francisco Pereira da Costa, era violinista; seu bisavô, Francisco Moniz Barreto, foi um famoso repentista baiano; sua mãe, a rádio-atriz Thereza Costa, a quem dedicou seu primeiro livro, foi, segundo Gilka, “uma heroína, bonita e inteligente, enfrentando todas as dificuldades da vida sem desânimo, conseguindo obter um nome de relevo no teatro e no rádio”. Sua casa, como a da maioria das famílias afro-brasileiras até hoje, parece ter por figura central não o pai, mas a mãe, que entra para a memória de Gilka como uma grande heroína na luta pela re-existência de si e dos seus. Foi a grande mestra da nossa poeta! 

Como sua família era economicamente vulnerável, Gilka não teve acesso a uma educação formal, pois o discurso liberal da época fez com que o Estado brasileiro não estabelecesse um sistema de educação pública e gratuita. Por isso sua mãe foi a grande responsável por sua formação, lhe transmitindo toda sorte de saberes e ofícios que acumulou durante a vida. O relato nos faz entender as referências de poder e autonomia desses outros femininos de(s)coloniais, bem como significados de(s)coloniais das relações entre as diásporas africanas e as Áfricas, no caso, as ressignificações da organização social matricêntrica – legado civilizatório africano recriado no Brasil a partir da diáspora –, o qual atravessa a educação de Gilka da Costa Machado e por isso destaco o sobrenome Costa:

Thereza Costa. Fon Fon, 16 de novembro de 1940, p. 20. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

No Rio de Janeiro do início do século XX, a imprensa escrita (jornais e revistas) era o principal meio de formação da opinião pública. Premiações e eventos literários faziam sucesso na capital do país, por isso era comum a sua organização e divulgação pela imprensa com o intuito de aumentar o número de seus leitores-consumidores e seu poder de influência na sociedade. Quando o jornal A Imprensa, um dos mais importantes da época, lançou um concurso para eleger a melhor poesia do Brasil, chegaram poemas de todo o país. Imagine a surpresa daqueles distintos Senhores de letras quando, na ocasião da entrega da premiação, surgiu na redação do jornal uma mulher, ou melhor dizendo, uma menina afirmando ser a autora do poema vencedor do concurso. E mais: essa menina também era a autora dos poemas premiados com o 2º e o 3º lugar, utilizando para isso dois pseudônimos diferentes. Como os Senhores de letras poderiam atribuir a melhor poesia do Brasil a uma mulher-menina-periférica? E mais “perturbador” ainda: uma mulher-menina-periférica-afro-diaspórica? Com apenas 13 anos de idade, ela apareceu na redação ao lado de sua mãe, Thereza Costa, com trajes simples de quem pertencia não aos salões chiques da zona sul carioca, região embranquecida e aburguesada da cidade, mas sim a zona norte do Rio de Janeiro, “zona perigosa” dos “subúrbios abandonados” da então capital do Brasil. Assim entrou para a história moderna-colonial a ainda menina Gilka Costa, cujos versos do seu poema Sândalo, ganhador do 3º lugar, já apresentam um erotismo “quente, esdrúxulo, ativo, emocional, intenso”. 

Na tradição pornô-erótica moderna-colonial, a mulher é situada apenas como objeto do desejo masculino, e não como agente do seu próprio prazer, violentando, assim, sua sexualidade, sua subjetividade, sua existência. No início do século XX, contexto de surgimento da escrita pública da nossa poeta, predominava no meio artístico-literário a concepção de que as mulheres possuíam uma natureza misteriosa, maligna, o imaginário do chamado “maldito feminino oitocentista”, criador da figura literária das “fêmeas fatais”: Dalilas, Judiths, Helenas, Salomés, Evas e tantas outras personagens de associação entre o feminino e mal. Essas mulheres eram temidas por supostamente seduzirem os homens não por amor, mas para levá-los à destruição por puro prazer sanguinário. Eis aí a historicidade das populares “piranhas”. A criação artístico-literária das “fêmeas fatais” é uma das reações de certa masculinidade amedrontada com os movimentos feministas do início do século XX, com o questionamento da suposta superioridade masculina. Assim, podemos compreender que os estereótipos inferiorizadores das feministas não vêm de hoje, é uma velha estratégia do imaginário patriarcal Ocidental, instituído no Brasil a partir da colonização.

Imagine o escândalo que foi (e ainda é para muitas pessoas) a visibilidade de uma mulher cujos poemas não eram considerados “femininos” – como as “flores”, o “lar”, o “recato” – e sim de letras deliberadamente eróticas. E se essa escritora, além disso tudo, fosse afro-brasileira e periférica? Aí começamos a entender os significados dos medos e esperanças que atravessam a revolução chamada Gilka da Costa Machado. Essa singularidade pode ser sentida/entendida quando lemos sua obra. Em Sublimações, a poeta nos apresenta uma experiência poética que denuncia os problemas instaurados com a modernização capitalista e identifica nas culturas afro-brasileiras a expressão de nossa singularidade, de nossa beleza e riqueza. Bahia, Negra Baiana, Samba, Dança de filhas de terreiro e Mocambos do Recife, são poemas em que as ancestralidades afro-diaspóricas de Gilka são mobilizadas como re-existências vivificantes de uma terra mortificada pelo patriarcado colonizador. Gilka Costa nos apresenta a sabedoria de quem transforma a miséria em dança, em poesia, em magia, em alegria; a beleza dos molambos marginalizados pelos sobrados. 

O pornô-erotismo dominante na produção editorial se dedicava a sedimentar uma sensibilidade erótica colonizada, que celebrava o tipo feminino das “francesas”, as “madames” – brancas, urbanocêntricas e socioeconomicamente privilegiadas. Assim, aquelas posicionadas às margens de tal padrão não eram significadas como objeto do desejo masculino. Em Gilka, as mulheres das camadas populares, que lotavam as ruas da cidade, têm a delicada beleza de seus trabalhos imortalizada pela sensibilidade da poeta, como em A Lavadeira: “pudesses tu, leda criatura, lavar minha alma da amargura e pô-la ao sol para secar”. A diversidade de formas, cores, sons, texturas e sabores das outras mulheres dos Brasis aparece em poemas como Negra baiana: “pescoço de ônix, reluzente e os braços carnudos e o colo opulento, sugerem embalos, canções de ninar”. Aqui, a padronização colonizada do erotismo é transgredida por Costa ao poetizar o corpo, a pele, os lábios, os gestos e os saberes das mulheres negras da Bahia como símbolos de sensualidade e encantamento, ritmados pela fala tonal do pretoguês baiano: “Iaiá que é que quer comprar?”. 

O que promoveu uma originalidade de(s)colonial de um tema clássico do cânone artístico-literário Ocidental: a musificação. A tradição poética do Ocidente relaciona inspiração à musa inspiradora. Na Grécia Antiga, as musas eram as filhas da deusa Mnemosine (associada à memória); nos movimentos artísticos-literários do período, a musificação girava em torno do imaginário das”fêmeas fatais”. A mais tematizada do período era a personagem bíblica Salomé que, em Gilka, é apropriada e reinventada: de maldita a vivificante. Gilka Costa de(s)coloniza a imaginação erótica, identificando e valorizando outras musas inspiradoras da sociedade brasileira.

Sua atuação pública não se limitou aos comportamentos sociais significados como corretos às chamadas “mulheres de família” da época. O fato de ter se tornado esposa e mãe, por exemplo, não silenciou o tema erótico de suas poesias, nem a continuidade de sua luta pela libertação das mulheres. Em 1910, mesmo ano em que se casou, Gilka participou da fundação do Partido Republicano Feminino; seu nome seguiu aparecendo relacionado às causas feministas na imprensa carioca das primeiras décadas do século XX. Porém, a morte do seu esposo, o poeta Rodolfo Machado, agravou sua difícil situação financeira, perdendo seu companheiro no sustento e formação de seus filhes, Hélios e Heros, mas contando, como sempre, com a força e parceria de sua mãe. Desprezada pelo meio literário e jornalístico, a única oferta que lhe apareceu foi daquele lugar social destinado pela nossa tradição moderna-colonial às mulheres afro-diaspóricas – Gilka Machado foi trabalhar como faxineira na Estrada de Ferro Central do Brasil para sustentar sua família. Com a ajuda de seu amigo, o poeta Pereira da Silva, conseguiu créditos para abrir uma pequena pensão em que passou a viver com seus filhes e sua mãe, provendo o seu sustento cozinhando para seus antigos colegas das letras. Nesta pensão, Gilka montou também um pequeno estúdio para sua filha, Eros Volúsia, observando-a e orientando-a em seus primeiros passos na sua brilhante carreira de dançarina, assim como sua mãe, Thereza Costa, também o fez na formação de nossa poeta.

O drama de Gilka da Costa Machado permanece atual e revelador do eixo de opressões de raça, classe e gênero de nossa história moderna-colonial. Na imprensa da época, podemos acompanhar os ataques constantes à “suburbana” de “vestido riscadinho” que corajosamente se apresentava e atuava como uma mulher de letras eróticas e feministas na sociedade brasileira. Ao analisar certos comentários depreciativos de seu fenótipo nos jornais do período, que a atacavam de “anêmica […] musa pobre de hematias [na qual] a fealdade passaria mais a miúdo, gozando a celebridade aumentada”, e uma foto sua de corpo inteiro, percebo que ela usava uma grande quantidade de maquiagem no rosto, deixando-o bem mais claro do que a outra parte do corpo visível – o antebraço:

Hora Literária. Revista Careta, 20 de outubro de 1917, p. 20. Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Nesta fotografia, Gilka é a primeira mulher de letras à esquerda. O que me faz pensar sobre os efeitos do racismo, “neurose cultural brasileira”. O branqueamento se torna, portanto, a condição de acesso e integração não só à cidadania, mas à própria humanidade moderna-colonial, no caso de Gilka, de integração à condição de mulher de letras. Mesmo em tais condições, a força de sua poesia conquistou reconhecimentos e celebrações no Brasil e no mundo. Em 1977, a Academia Brasileira de Letras finalmente passou a aceitar mulheres como imortais. Nesta ocasião, o escritor Jorge Amado enviou uma carta à poeta pedindo que aceitasse se candidatar, pois, para Amado, a poesia de Gilka é “uma das mais belas em língua portuguesa”. No entanto, ela recusou o convite, pois, apesar de amar a poesia, o meio literário causava-lhe “nojo”. 

Nossa poeta passou o restante de sua vida vivendo com sua mãe – que continuou ativa e crítica em sua carreira de rádio-atriz – e com sua filha, dedicando-se à carreira de Eros, a qual não abriu mão da companhia e orientação de Gilka ao longo de sua trajetória. As memórias de suas experiências nos subúrbios do Rio de Janeiro, em meio a candomblés e capoeiras, atravessadas pelas relações matricêntricas de sua casa, potencializaram a originalidade, ousadia e beleza da dança de Eros Volúsia. O feminino vivificante das poesias de sua mãe se desdobrou em espetáculos de dança em que Eros entrecruzou manifestações das culturas afro-brasileiras à gêneros musicais considerados clássicos pela tradição canônica Ocidental, marcando a história da dança no Brasil e no mundo. 

Embranquecida com o passar dos anos, a vida e obra de Gilka continua atual e extremamente relevante para a educação brasileira. Sua história nos conta tanto sobre as opressões e violências em torno da vida de uma mulher-escritora-negra-periférica quanto sobre a continuidade histórica da exclusão das escritoras negras da ABL, confirmada no recente caso da escritora Evaristo Conceição, indicado no início deste texto, como também nos possibilita entender as potências libertadoras e de(s)coloniais dessas musas negras da nossa história. 

Gilka da Costa Machado, por todo ensinamento ancestral: gratidão!

Três gerações gloriosas: Thereza, Gilka e Eros Volúsia Costa. Fonte: Fon Fon, 9 de fevereiro de 1946, p. 40.

Assista ao vídeo da historiadora Marina Vieira de Carvalho no Acervo Cultne sobre este artigo: 

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: (EF09HI03) Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados; (EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil (EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas.

Ensino Médio: (EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos; (EM13CHS104) Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço; (EM13CHS402) Analisar e comparar indicadores de emprego, trabalho e renda em diferentes espaços, escalas e tempos, associando-os a processos de estratificação e desigualdade socioeconômica.

Marina Vieira de Carvalho 

Professora Adjunta da Universidade Federal do Acre (UFAC); Doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); E-mail: marinacarvalhohist@gmail.com; Instagram: @marinacarvalhohist

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