Na gestão Temer, quase tudo cheira a naftalina, a começar pelo slogan

“Eu vejo um museu de grandes novidades”, cantou o poeta Cazuza em “O tempo não para” (1988); canto eu ao fim da primeira semana do vice Michel Temer como presidente em exercício. No recém-empossado governo quase tudo cheira a naftalina, do ministério composto inteiramente por homens brancos à distribuição de cargos por cota partidária e aos impasses para escolher o líder na Câmara dos Deputados. Na gestão que se pretendia nova sobram ideias, personagens e ícones do passado. A começar pelo slogan, Ordem e Progresso, tomado emprestado da bandeira nacional.

Por Flavia Oliveira, do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Já na primeira hora do primeiro dia o Brasil foi apresentado à marca do governo Temer. A frase da bandeira aparece estampada em verde e amarelo num globo tridimensional que se aproxima das palavras Brasil Governo Federal, base da logo. Ricardo Leite, CEO da Crama Design, agência que assina, por exemplo, a marca dos 450 anos do Rio, informa que esfera 3D é recurso muito usado por empresas de varejo popular. Algo se explica.

Claríssima é a intenção por trás da apropriação do símbolo pátrio que marcou as manifestações contra Dilma Rousseff e o PT. O “lindo pendão da esperança, símbolo augusto da paz”, como exalta o “Hino à Bandeira”, é isca para atrair o apoio da classe média que tomou as ruas pelo impeachment. “A marca é um atalho mental para a mensagem que o governo quer passar. Nesse caso, o nacionalismo é recado inequívoco. O uso da bandeira e suas cores se opõe ao vermelho do PT e remete a união, coalizão”, diz Leite.

Não foi por acaso que o lema positivista de Auguste Comte (“o amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”) incorporou-se à bandeira e ao governo Temer. Tanto na proclamação da República quanto na interrupção do governo de Dilma, os novos mandatários careciam de legitimidade e aprovação popular. Nada melhor que prometer progresso pelas mãos de uma gestão ancorada na ordem e tomada de certezas.

“A conotação é conservadora e, de certo modo, autoritária. Sugere que uma elite iluminada conduzirá o país ao progresso. Passa ao largo do que seria a ‘desordem’ da mobilização social”, diz o historiador Carlos Fico. Num ato falho dos criadores, à frente o publicitário Elsinho Mouco, a versão original da marca omitia cinco estados, repetindo o centro da bandeira usada entre os anos 1960 e 1968.

Na busca de respaldo popular, o governo Temer atua no campo simbólico e, até aqui, no discurso oral. De um lado, a bandeira; de outro as promessas de reformas (tributária, previdenciária, fiscal, administrativa) e de revisão de atos da gestão que o antecedeu. Pente fino é senha usada por vários membros do primeiro escalão. Foi o que o ministro de Desenvolvimento Social e Agrário, Osmar Terra, prometeu fazer no Bolsa Família para reduzir em, talvez, 10% o total de beneficiários.

Políticas públicas precisam de aferição e revisões, obviamente. O Bolsa Família não está imune. Prova disso são as recomendações periódicas do Tribunal de Contas da União. O ministro foi infeliz ao lançar suspeita sobre o carro-chefe das políticas sociais, cujo valor médio é de R$ 176 — e que o presidente em exercício prometeu blindar da tesoura orçamentária — no momento em que desemprego e desigualdade crescem. Periga a rede de proteção social ter de aumentar, não encolher. Mais consistente foi Henrique Meirelles ao afirmar que desonerações e subsídios (a bolsa empresário, em suas palavras) oneram mais o governo que os programas sociais.

O ministro da Fazenda apresentou propostas e nomes para lá de conhecidos para ressuscitar a economia — alguns já estiveram nos governos FHC, Lula e Dilma. A dúvida é se haverá condições políticas para levar adiante a agenda. A simples troca de presidente subordinada ao velho fisiologismo reforça a desconfiança.

Não é por acaso que o mercado financeiro anda cabreiro, desde que Dilma foi afastada do cargo para o qual fora escolhida por 54 milhões de eleitores. Na semana anterior à saída, a agência de classificação de risco Fitch rebaixou a nota brasileira pela segunda vez em 2016. Em vez de voto de confiança, deu sinal de alerta ao sucessor.

No dia seguinte à posse, foi a vez de a Standard & Poor’s, outra gigante do ramo, divulgar relatório sobre os desafios de Temer. O texto dizia que “o suporte político pode se enfraquecer”, em razão da baixa aprovação popular, da oposição atuante do PT e do risco de investigações de corrupção afetarem membros do governo. Nove nomes do primeiro escalão estão sob investigação ou foram citados por delatores da Operação Lava-Jato. A vida real não será fácil.

 

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