Não dá para negligenciar a memória roubada

A recomposição do passado é essencial para estabelecer reciprocidade e equidade racial no país

Navegando pelas redes sociais, me deparei com uma publicação sobre a trajetória dos antepassados de um conhecido lá do Rio Grande do Sul, minha terra natal. A pessoa homenageou o pai com a narrativa dos feitos da família desde a chegada dos tataravós ao Brasil, em 1889, no ápice da imigração europeia.

Fiquei encantada com a riqueza do relato. Incluía detalhes sobre a cidade de origem da família, procedente do norte da Itália; os nomes completos; características físicas, como o “sorriso bonito”; habilidades pessoais; tradições trazidas que seguem vivas e preservadas… Uma porção de coisas importantes na construção da identidade de um ser humano. Muito bonito.

Marcha da Consciência Negra em São Paulo – Rivaldo Gomes – 20.nov.2022/Folhapress

Não consegui evitar a frustração de não poder fazer algo semelhante e render homenagem aos que antecederam meus avós. Quem foram os meus bisavôs? De que lugar da África vieram? O que deixaram para trás quando foram sequestrados e escravizados? Como se conheceram? Quantos filhos tiveram? Não faço ideia. O apagamento desfez no tempo espaço o elo entre meu passado e o presente. Minha memória genealógica foi roubada ao longo do ciclo de escravização. Não só a minha.

Não é segredo que o Estado brasileiro tratou de tirar dos negros o direito à história pessoal. É coisa que fere o direito à identidade e está na base do pleito por ações de reparação pela escravização, uma demanda histórica dos movimentos sociais negros.

Na tentativa de evitar que o “Plano Nacional de Ações de Igualdade Racial” (lançamento previsto para o Dia Nacional da Consciência Negra) caia no vazio, o Ministério Público Federal marcou audiência pública para 22 de outubro. Tema: “Ações de reparação pelo Banco do Brasil e construção do pacto pela igualdade racial”. Há cerca de um ano, o BB pediu perdão pela participação na sustentação do mercado escravista e anunciou medidas de combate ao racismo institucionalizado.

A recomposição do passado é essencial para despertar a consciência coletiva e estabelecer reciprocidade e equidade racial no país. Reparação pela escravização vai além da perspectiva econômica. Não dá para negligenciar a memória roubada.


Ana Cristina Rosa – Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

+ sobre o tema

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...

para lembrar

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro...

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira...

Promotor é investigado por falar em júri que réu negro merecia “chibatadas”

Um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul é...
spot_imgspot_img

O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar....

Quem ganha ao separar pessoas pretas e pardas?

Na África do Sul, o regime do apartheid criou a categoria racial coloured, mestiços que não eram nem brancos nem negros. Na prática, não tinham...

Justiça manda soltar PM que matou marceneiro negro com tiro na cabeça na Zona Sul de SP

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concedeu nesta quarta-feira (27) habeas corpus ao policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, réu por assassinato de Guilherme Dias...