Mesmo não se sentindo bem de saúde, você se preocuparia com que roupa vestir antes de ir ao hospital ou a uma consulta médica? Ou teria receio da forma como seria tratada na hora de dar à luz por causa da cor de sua pele? Esta é apenas uma amostra do que passa pela cabeça da população negra brasileira.
Ainda criança, a trancista Sara Viana, 22, recebia o conselho da mãe de que elas seriam mais bem atendidas se chegassem ao hospital bem vestidas. “Ela falava que os hospitais públicos não atendem bem as pessoas da comunidade. Então eu poderia estar morrendo, mas pensava: tenho que me arrumar minimamente.”
Em 2020, a Sara sentiu na pele o que a mãe temia. Ela afirma que não sabia que estava com infecção na vesícula e foi levada ao hospital às pressas, de pijamas.
“Até meu cabelo estava molhado, pois chovia no dia. Percebi o incômodo da enfermeira da triagem, que nem me examinou e disse que era cólica e deu a classificação como baixo risco. Como estava com muita dor, meu pai e meu irmão me levaram para outro hospital, onde fui atendida por uma médica negra que me deu atenção. A situação era tão grave que passei por cirurgia no mesmo dia”, relembra.
Coordenadora de um grupo sobre maternidade na Casa de Marias, espaço de escuta e acolhimento para mulheres pretas em situação de vulnerabilidade social, a psicóloga Alessandra Marques diz ser comum ouvir relatos de violência obstétrica.
“Há uma ideia de que a mulher negra suporta mais a dor. É comum pacientes relatarem medo antes do parto. Já é um momento de mais fragilidade, e essa mulher pode sentir ainda mais dor porque não consegue relaxar devido à tensão.”
Como parte de um estudo publicado em 2016 e citado com frequência, pesquisadores da Universidade da Virginia (EUA) investigaram 222 estudantes e médicos residentes brancos e descobriram que mais de um terço deles acreditava equivocadamente que negros têm a pele mais espessa que brancos e, por isso, faziam recomendações menos adequadas para tratamentos contra dor. O estudo foi publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences.
Essas situações têm consequências na saúde mental e podem ser agravadas quando não tratadas. “Elas nem sempre encontram escuta qualificada. Pacientes dizem que tiveram suas falas sobre racismo ou solidão da mulher negra invalidadas quando atendidas por psicólogos brancos. Esse tipo de atendimento pode agravar mais o quadro.”
Coordenadora-geral da Casa de Marias, a também psicóloga Ana Carolina Barros Silva ressalta a importância de profissionais negros no atendimento a essa população e cita a própria experiência como exemplo. Ela conta que passou por vários dermatologistas e ginecologistas brancos até encontrar, enfim, profissionais negros que correspondessem a suas expectativas.
“A dermatologia é composta majoritariamente de pessoas brancas, que dificilmente têm formação para lidar com a pele negra e, por isso, usam protocolos que não são adequados.”
De acordo com a fisioterapeuta Merllin de Souza, doutoranda na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), o currículo básico dos cursos de saúde não têm disciplinas obrigatórias sobre atenção à população negra. Há, contudo, uma disciplina optativa, chamada Formação do Profissional de Saúde e Combate ao Racismo.
“Esses profissionais estão sendo formados para atender os usuários do SUS, das UBSs, dos postinhos, pessoas pretas periféricas que passam por racismo estrutural?”, questiona. “Às vezes a pessoa chega num estágio grave porque não consegue ter o atendimento necessário.”
Para Souza, a formação básica do médico deixa a desejar nesse aspecto. “O Código de Ética prevê respeito étnico racial, mas a maioria dos conselhos não discute essas questões. É preciso respeitar os direitos humanos e trabalhar o letramento racial com esses profissionais”, afirma.
Ythalo Pau-Ferro, 22, cursa o quarto semestre de medicina na USP e diz que o racismo é evidente nos ambientes de saúde. “Um paciente negro que chega vomitando pode ser considerado um usuário de drogas”, critica. Como homem preto, ele afirma querer contribuir para que esse quadro mude.
A pesquisadora Ana Claudia Sanches Baptista, 34, diz que nunca foi atendida por médicos negros, com exceção de sua psicóloga. “Ela é a primeira profissional negra da área da saúde por quem sou atendida”, diz. E relata que uma vez foi constrangida por uma ginecologista, durante um exame de rotina. “As mulheres negras são consideradas parideiras. Essa médica ficou indignada por eu não querer ter filhos.”
O dentista Guilherme Blum, 31, conta que começou a pesquisar sobre a saúde bucal do homem negro porque sentiu falta dessa abordagem no curso de odontologia. “A população negra é a que mais perde dentes ou tem doença bucal, mas não se fala sobre isso”, diz ele, referindo-se a casos de dor, cárie, perda dentária e necessidade de prótese.
Blum atua no Programa Saúde da Família e relata um episódio no qual um paciente o abraçou porque sentiu identificação e conforto. “Existe um conceito subjetivo de que pessoas pretas aguentam mais a dor, o que na verdade é racismo estrutural.”
Outro atendimento que o marcou foi o de uma criança de 7 anos com a mãe. “Ela disse que ficou feliz por ter me encontrado e chorou ao lembrar que sofreu violência odontológica, tiraram muitos dos seus dentes.”
A discriminação no ambiente de trabalho também traz riscos à saúde psíquica da população negra. A enfermeira Carla Mantovan, 38, relata que passou por situações de racismo ao longo de cinco anos que contribuíram para o avanço de quadros de depressão e também de vitiligo. Ela chegou a se afastar do trabalho por um período, para cuidar do emocional, mas acabou pedindo demissão no início deste ano porque o assédio continuou após seu retorno às atividades.
“Tive que tomar essa decisão em nome da minha saúde mental, porém hoje pago um preço alto. A renda familiar caiu muito, meu marido também ficou sem emprego, e temos financiamentos atrasados e uma bebê de um ano e meio.” Ambos trabalham hoje por conta, como confeiteiros.
“Não registrei boletim de ocorrência nem gravei o que acontecia. Quando reportei aos meus superiores o que acontecia, eu não tinha provas e não validaram o que falei. E quando levei um advogado, as testemunhas se omitiram”, afirma Carla.
A psicóloga da Casa de Marias lembra que, além do racismo, as mulheres pretas enfrentam mais dificuldades no acesso a saúde, educação, moradia e emprego, o que contribui para uma vida “cada vez mais precarizada”. “Somados, todos esses elementos produzem sofrimento psíquico. Começam a surgir sintomas psicossomáticos, transtornos de ansiedade, depressão, insônia”, diz Silva.
Quanto aos homens, ela ressalta que o homem preto é cobrado para ser forte e raramente busca ajuda profissional quando o assunto é saúde mental. “Muitos buscam apoio quando já estão em um estado de surto, de depressão grave.”