Nelson Inocêncio, um ativista na UnB

Professor que acompanhou o processo de implementação das cotas raciais na UnB e no país, Nelson Inocêncio conta como a luta contra o racismo guiou sua carreira e produção artística

FONTECorreio Brasiliense, por Mariana Niederauer
Apaixonado pela Universidade de Brasília, onde trabalha há 30 anos, o professor Nelson Inocêncio começou cedo a trilhar o caminho do ativismo negro e hoje consolida, com garra e coragem, a luta contra o racismo. - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

As lutas do movimento negro transparecem na pele e na história do professor Nelson Inocêncio. Brasiliense da primeira geração, apaixonado pela Universidade de Brasília (UnB), onde trabalha há 30 anos, ele viu a evolução da luta contra o racismo a cada episódio que guiou uma evolução alcançada com suor e sofrimento na instituição.

Para tentar explicar todas essas relações, ele começa do começo: “Eu sou um homem negro fruto de uma relação de duas pessoas negras de classe média. Meus pais eram servidores de tribunais aqui em Brasília”. A mãe, Jurema, que morreu em 2018, veio com o marido para Brasília em 1960, transferida do Rio de Janeiro. “Chegou grávida de mim”, relata Nelson. “Ela era um quadro do Tribunal de Contas da União. Meu pai trabalhava no Açúcar União, no Rio de Janeiro, pediu demissão e veio para Brasília tentar a vida. Aqui se tornou servidor do Tribunal de Contas do Distrito Federal”, contextualiza o professor. “Mamãe convenceu papai: ‘Vamos pra Brasília que vai dar tudo certo’. E ele veio.”

O casal já tinha três filhas. Nelson é o quarto e nasceu em 1961, no então Hospital Distrital — hoje Hospital de Base. Depois dele, vieram o caçula e dois filhos adotivos. “Eu sou brasiliense da primeira geração”, orgulha-se. “Eu quero dizer com isso que eu sou uma pessoa negra privilegiada. Porque, para mim, a questão de renda não era uma questão. Isso não quer dizer que eu estivesse livre do racismo”, explica. “Nós tínhamos um padrão de vida muito bom. Moramos bem, no Plano Piloto, 306 Sul, em apartamento que era propriedade dos meus pais.”

Em 1969, no entanto, a família se muda novamente para o Rio. É lá que Nelson passa parte da infância e a adolescência, entre a capital carioca e Niterói. Em meados dos anos 1970, os pais se separam e a mãe volta para a capital federal com os dois filhos mais novos em 1977. “Daí eu fiquei, nunca mais saí de Brasília. Terminei aqui o ensino médio. Estudei no Objetivo, que naquela época era considerado o ‘top’ das escolas”, lembra Nelson.

Inocêncio foi aprovado no primeiro vestibular que prestou para a Universidade de Brasília. “Entrei aqui, para este departamento”, diz, apontando as mãos para as paredes do Instituto de Artes (IDA). Antes mesmo da estreia na instituição, porém, já começava a trilhar o caminho no ativismo negro. “Muito jovem, com 17 anos, participei do processo que resultou na criação da primeira entidade negra do Distrito Federal, que era o Centro de Estudos Afrobrasileiros, ficava lá no Edifício Brasília Rádio Center.”

Mudança dentro de casa

Professor que acompanhou o processo de implementação das cotas raciais na UnB e no país, Nelson Inocêncio conta como a luta contra o racismo guiou sua carreira e produção artística (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Alguns momentos-chave levaram o professor ao despertar da consciência racial. “Eu fui provocado”, diz ele. “Primeiro pela minha irmã Elaine, que já faleceu. Ela me chamava a atenção para essas questões”, relata Nelson. As outras duas irmãs haviam começado o processo de alisamento dos cabelos quando, um dia, Elaine surge em casa ostentando um black poderoso. “Foi um misto de surpresa e de estranhamento, mas foi uma coisa muito legal. Imagino que ela soubesse como ela nos provocou positivamente”, relembra.

Antes de voltar para Brasília, ele também começou a frequentar bailes de soul music, repletos de outros negros usando o cabelo black. “Look que está sendo retomado hoje, mas naquela época eu acredito que tenha um aspecto muito particular, porque era ditadura. Estou falando de 1978/79. O regime autoritário estava ali. Já estava mostrando sinais de esgotamento, mas existia. E defender uma identidade negra naquele contexto era também subversão”, observa.

“Você afirmar que a sociedade é racista e que você precisa enfrentar o racismo e saber quem você é, que você precisa ter orgulho da sua história, dos seus antepassados, tudo isso, para um regime autoritário, que acreditava no mito da democracia racial, era uma ousadia, uma afronta”, continua o professor, que ainda hoje lembra com clareza de detalhes até das imagens projetadas nas paredes durantes os bailes.

“Eu não tinha consciência disso, mas eu sabia que era muito bonito entrar num baile, ver centenas de pessoas negras, todas com o cabelo crespo, e a gente ouvindo soul, ouvindo música. Tinha umas projeções de filme na parede mostrando a questão da luta contra o racismo, imagens dos Panteras Negras, tudo isso me chamou muito a atenção.”

Nelson também cita o cunhado Paulo como uma das referências que o levou a ter contato com textos importantes para compreender a questão racial. “E, diga-se de passagem, a constituição do Centro de Estudos Afrobrasileiros é resultado de reuniões que aconteciam em domicílios, sempre com receio, porque a gente estava vivendo uma ditadura. A casa da Suzana, minha irmã, e do Paulo, era uma daquelas onde havia essas reuniões.”

Tudo isso para mostrar que a entrada na UnB ocorreu em um momento em que a questão racial já era central na vida de Nelson. Em seguida, veio o que ele chama de uma “crise com o curso” e a mudança para a graduação em comunicação, finalizada em 1985. “Eu comecei nas artes visuais, no Departamento de Desenho, fazendo licenciatura em educação artística, e termino em 1985 com a graduação em comunicação com habilitação em publicidade. Lamentavelmente, tive meu diploma assinado por um reitor imposto, José Carlos Azevedo, que ficou 14 anos aqui.”

Nelson Inocêncio ao lado do filho Kiluanji, 24 anos. Abaixo, capas do Correio contam momentos emblemáticos da universidade que o professor testemunhou(foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A importância da ancestralidade na vida do professor se mostra também na família. O filho mais velho foi batizado com nome de origem nigeriana, Omowalê, 35 anos. Já o caçula, Kiluanji, 24, nome de origem angolana, cursa ciências contábeis também na UnB.

A consciência negra em cartaz

A volta para a UnB veio rápido. Em 1989, Nelson iniciou o mestrado na Faculdade de Comunicação. Sob orientação do professor Fernando Bastos e, depois, de Clara Andrade Alvim, escreveu a dissertação A consciência negra em cartaz, uma pesquisa sobre a produção de cartazes pelo ativismo negro, como um contraponto às imagens estereotipadas em circulação na mídia. “A ideia era mostrar que existia também a possibilidade de construir referenciais imagéticos positivos”, explica. “O Brasil sempre foi um país que produziu racismo. Acho que a sociedade custou a entender isso. Essa dissertação foi defendida em 1993, e a minha história foi sempre assim, o campo acadêmico e o ativismo.”

Nessa época, ele já estava filiado, por exemplo, ao Movimento Negro Unificado. “Era uma visão mais radical. Mas quando eu falo radical eu não falo no sentido pejorativo, eu falo radical no sentido de coisa radical, porque estava indo à raiz das questões. As pessoas muitas vezes confundem fundamentalismo com radicalidade. O fundamentalismo é uma coisa péssima”, observa.

Durante o mestrado, passou no concurso para técnico administrativo e entrou pela primeira vez na universidade como funcionário. A carreira docente levou mais um tempo para ser iniciada. Em 1994, deu aulas no UniCeub, e só no ano seguinte foi chamado para ocupar a vaga no IDA. Em 2022, completa 30 anos a serviço da UnB. Foi no mesmo departamento que participou do então inédito Programa de Pós-Graduação e apresentou tese de doutorado sobre o Museu Afro Brasil, fundado por Emanoel Araújo, morto no último 7 de setembro e de quem era amigo.

Provocações ao longo do caminho

A carreira docente é o que guiou o caminho de Nelson Inocêncio na vida profissional, mas a produção artística também teve espaço, e muitas vezes em situações provocadas por acontecimentos marcantes dentro do câmpus. “Eu tenho uma produção na arte visual que é sazonal. Eu já expus e já fui curador também”, detalha o professor.

Gravuras e logomarcas que carregam a luta contra o preconceito e por mais representatividade e visibilidade para a questão racial também fizeram parte da obra de Nelson. E as provocações não pararam ao longo dos anos. Num certo dia, ainda na década de 1980, os muros do IDA amanheceram pichados com frases como “Morte aos negros” e “Viva o apartheid”. Apesar de não estar na UnB à época, ele lembra com riqueza de detalhes da repercussão e da tentativa de alguns professores de conscientizar a comunidade acadêmica sobre a urgência da discussão da questão racial. “A gente não esperava que isso fosse acontecer dentro da universidade. Quando Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro pensam a UnB, eles estão pensando uma universidade inovadora, à frente do seu tempo.”

Mais tarde, outra situação de racismo chocou a UnB e ele, agora docente, ajudou na conscientização por meio da arte, com curadoria para exposição na Galeria Espaço Piloto, em 2007, após o caso emblemático de estudantes africanos que tiveram o apartamento na Casa do Estudante (CEU) incendiado de maneira criminosa. Atendendo ao convite do também professor Miguel Simão, à frente da gestão do espaço, aceitou fazer a curadoria da exposição Artivismo negro. “Eu fiquei responsável pela curadoria de uma mostra de artistas — mulheres e homens — negros que traziam para a galeria as suas poéticas, sempre com alguma abordagem sobre a questão racial.”

“Precisamos ter mais coragem e audácia”

Antes da demonstração criminosa de preconceito racial em incêndio da Casa do Estudante, a UnB deu início a uma primeira revolução nas regras de acesso, que alguns anos mais tarde dariam importante contribuição para a criação da Lei de Cotas. “Em 1998, acontece um episódio grave, que é o caso Ari. Ocorre lá no Departamento de Antropologia”, conta o professor Nelson Inocêncio.

Arivaldo Lima Alves foi o primeiro aluno negro a entrar para o doutorado do Programa de Pós-Graduação do departamento e também o primeiro a ser reprovado em uma disciplina obrigatória. O estudante, então, recorreu do resultado até a última instância. “Acabou criando uma situação tensa, que a universidade não queria discutir. Surge um racha dentro do departamento e dois professores que ficaram a favor do Ari resolveram elaborar um projeto de inclusão da população negra na universidade”, relembra Nelson, citando os docentes José Jorge de Carvalho, orientador do doutorando à época, e Rita Laura Segato.

“Esse projeto que eles apresentam na verdade tem a ver com uma importantíssima demanda do movimento negro já nos anos 1990 por reparação. A gente começa discutindo reparações e vai chegar às políticas de ações afirmativas. Eu acompanhei tudo isso e vi tudo com muita preocupação”, detalha o professor, que contribuiu com o processo ajudando a formatar documentos e a conscientizar a comunidade acadêmica. “Fiz um trabalho de articulação. Muita gente não entendia e não queria entender.”

Em 2003, votação no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) confirma a implantação das cotas raciais na UnB, em decisão inédita entre as universidades federais do país. “À época, o reitor era o Timothy Mulholland e ele resolve executar. No vestibular de 2004, então, você já tem a política em curso”, celebra o professor, que trabalhou em todas as edições das seleções com cotas até a Lei nº 12.711/2012.

A norma, que completa 10 anos em 2022, também representou um marco para o movimento negro no país, apesar de serem feitas uma série de ressalvas. Para o professor, por exemplo, a autodeclaração como critério único para a seleção é uma das falhas. Na visão dele, as universidades poderiam ter criado mais mecanismos para evitar fraudes. “A UnB está começando a agir, mas nós perdemos muito tempo. Eu participei de uma comissão que suspendeu matrículas e cancelou diplomas”, detalha.

Esforço recompensado

Servidor da UnB há 30 anos, o professor tem produção artística em desenhos e marcas (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

“Apesar de todas as sabotagens, estamos conseguindo ter populações negras na universidade. Claro que nesse grupo também vem muita gente branca que, da forma mais perversa possível, se apropriou e está procurando as cotas”, observa Nelson, que defende ser um processo em andamento. “Não dá para encerrar a cota com 10 anos. Nós estamos num processo de inserção da população negra na graduação, no mestrado, no doutorado e na carreira docente, que é um outro desafio”, afirma, lembrando que a maior parte dos concursos para professores em universidades oferecem pouquíssimas vagas, o que impossibilita a aplicação do critério de cota racial. “Isso é uma questão de gestão e de vontade política”, atesta. “Precisamos ter mais coragem, mais audácia.”

A exemplo do que aconteceu lá atrás, com o pioneirismo da UnB, conforme reforça o próprio professor: “A nossa contribuição foi substantiva, porque a partir da UnB outras universidades se sentiram corajosas”. E ele vai além, defendendo que o projeto da universidade é mais avançado que o da Lei nº 12.711, “porque ela (a lei) condiciona raça a classe, na medida em que ela só trabalha com a ideia da escola pública”. “O racismo vai além da escola pública. Se você juntar raça e classe, há uma sobrecarga, mas é preciso ter um entendimento de que raça é uma categoria autônoma. Por isso se fala de racismo estrutural. O movimento negro fala disso desde os anos 1990.”

A resistência de cotistas anos atrás em tentar cursos de maior concorrência, como comunicação, arquitetura e medicina, é sinal de que o processo de mudança é lento. “A cota não é questão de capacidade, é questão de oportunidade”, destaca Nelson. E por isso ele acredita na necessidade de revisão dos currículos, aliada às ações afirmativas. “Continuamos formando pessoas que não se deram conta desse cenário, desse contexto, em que nós estamos discutindo a afirmação das identidades: identidade indígena, identidade negra, identidade feminina, identidade LGBTQIAP , identidade PCD”, elenca o professor.

As cotas 10 anos depois

É nesse contexto também que Inocêncio oferece uma visão crítica da primeira década de implementação de cotas raciais no país. “Eu não fui atendido pelas cotas, mas muita gente foi. Por que eu estou falando disso? Não se pode cuspir no prato que se come, porque se eu negar a importância do que nós conquistamos até aqui, eu estou negando o movimento negro. Não fosse o movimento negro, não estávamos sequer fazendo essa entrevista aqui e pensando essas questões”, considera.

“Eu acho que a gente tem, sim, que entender a relevância (das cotas), porque não entender a relevância, não entender a diferença que isso representa, é negar o legado do ativismo, o que eu acho uma grande bobagem. Eu, particularmente, acho que isso vai exigir de nós todos, mulheres, homens, negros, brancos, que têm um compromisso com a superação do racismo, maior comprometimento no sentido de melhorar a qualidade da política.”

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