No fundo, tenho medo: reflexões acerca dos afetos e anseios de mulheres negras em Caju

Com quase 6 meses de lançamento do disco Caju, de Liniker, tento escreviver um pouco das impressões e afetações produzidas a partir das longas horas ouvindo cada uma das faixas. Pensei em focar minhas elaborações nas mediações e anseios de mulheres negras que tentam se equilibrar na corda bamba da busca pela consolidação profissional, mas que ao olharem para baixo, deparam-se com o medo de “correr sozinha e nunca alcançar”. Não se enganem, este texto não será pessimista e nem estará lastimado em falar sobre solidão. Na realidade, ouso dizer que nem teria como sê-lo, tendo em vista que a fagulha que incendeia essas palavras é o Caju, que, para quem não ouviu ainda, vale indicar, a cantora Liniker se despe dos assombros da escassez que dizem pertencer aos amores negros e fala sobre afeto, sobre coragem, sobre autorreconhecimento e autovalorização, sobre se apaixonar, sobre medo, sobre anseio, sobre esperança e reconhece em si o valor de pessoas negras que estão em um relacionamento sério com suas carreiras. Ao longo desse texto não vou esmiuçar cada uma das composições e nem abordar de forma tão aprofundada sobre a construção melódica ou audiovisual, mas além de pensar sobre amor, medos, afetos e anseios, quero partilhar algumas observações.

Liniker marca seu álbum com diferentes gêneros do guarda-chuva da música negra, explorando desde levadas de jazz em “Mayonga” ao pagodão de “Pote de ouro”, o sambinha de “Febre”, o R&B de “Papo de Edredom”, o house de “So special” e as referências de miami bass de “Deixa estar”, bem como as influências de Spirituals em “Veludo Marrom”. Com essas múltiplas referências da estética negra a cantora evidencia tanto a pluralidade das possibilidades inventivas da cultura negra, quanto suas próprias possibilidades de forjar-se subjetiva e materialmente como pessoa. No que diz respeito à multiplicidade sincera, profunda e crua das temáticas abordadas, é importante nos atentarmos às miudezas trágicas das experiências coletivizadas pela experiência racial, mas sem perder de vista o que mais nos importa ao falarmos sobre possibilidades inventivas da música negra: os caminhos para forjar-nos subjetivamente e materialmente como pessoas são muitos, e por este motivo temos diversas linguagens de groove para comunicarmos a nós mesmas.

A faixa Caju é ambientada em um aeroporto onde o Eu-lírico está prestes a embarcar em um vôo a trabalho, mas questiona à pessoa que se relaciona o quanto a ausência é sentida, o quanto a presença é apreciada, e de forma muito corajosa se despe da ambição, da busca pelo sucesso profissional, da segurança e autossuficiência e pergunta: “será que você sabe que no fundo eu tenho medo de correr sozinha e nunca alcançar?”. Em outras palavras, poderíamos dizer que Liniker pergunta se a pessoa está consciente de que ela tem medo de investir tanto em si, na sua carreira e, em entrelinhas, ser a única investindo na relação, e mesmo com todos esses esforços, não ser o suficiente para ter sua ausência sentida, sua presença apreciada, sua carreira estabelecida e um amor recíproco à sua espera quando voltar para casa. Em Tudo, a cantora relata tanto a cena em que se apaixona quanto as idas e vindas da vida, que ocasiona flutuações entre estar perto e estar longe. Algo que também diverte e diversifica é quando ela canta “você atravessando a rua, fez parar meu coração/ não morri, não era a hora, mas me fez suar”, de forma que mandinga a sua própria existência e afasta o carrego da morte precoce que assombra à população negra, trans e travesti.

Popstar também tem um lugar especial para mim. A música retrata o processo de perceber os limites necessários para a construção da relação que foi desejada em Caju. Liniker começa relatando a falta de tempo da pessoa que ela tinha intenção de se relacionar e enfatiza o quanto a outra pessoa sustentava a relação apenas com palavras. Nas primeiras estrofes ela salienta o quanto ela ficaria presa em uma relação sustentada por promessas, limitando suas chances de vivenciar coisas boas com outras pessoas na espera eterna pela disponibilidade. Ao longo da canção a cantora reconhece o tratamento que merece “tá errado me tratar como se eu fosse uma nota rasa dessa melodia tão vulgar” e estabelece novos parâmetros para quem quiser adentrar em sua vida: “pra ter espaço aqui dentro, tem que valer minha canção”. Uma das dimensões mais importantes de Popstar, é quando ela atesta que “todo mundo merece amor, até uma popstar”: na obstinação pelo sucesso, estabilidade financeira, progressão de carreira, aperfeiçoamento e especialização profissional, pelo destaque e reconhecimento em determinada área (não só na dimensão artística e acadêmica, mas também), Liniker reconhece o merecimento de amor, por mais que tenha sido uma esfera negligenciada durante o processo de tornar-se popstar – e ainda que este não seja o caso dela, é um trecho que afeta intimamente várias de nós. Finalizando este parágrafo, é importante também falarmos sobre o reconhecimento do valor do amor dedicado à outra pessoa “agora sei que meu amor é um pote de ouro” e sobre o próprio merecimento de amor “tesouro raro, impossível não me amar/não é coragem que precisa para estar do meu lado”, para amarrar sentido ao estabelecimento de limites e exigência de reciprocidade “eu não quero mais quem não gosta de mim/e vou seguindo em paz, caminho com meu coração”.

Veludo Marrom está entre minhas músicas favoritas. A calma transmitida pela melodia em meio a simplicidade de um único instrumento ritmando a maior parte da música e trazendo centralidade para a voz e letra, até que já em uma repetição do refrão bateria, piano e instrumentos de sopro, assim como um coral de back vocal, são inseridos proporcionando uma experiência transcendental do cenário descrito pela cantora e levando-nos a imaginar em “um dia colados a sós, com tempo para se discorrer a dois”, sentindo a pele e aroma de quem amamos, sem ligar se faz frio ou faz calor, torcendo para não ser mentira toda essa calmaria, zelo e a possibilidade de não estar com pressa naquele momento de se deleitar no sorriso. De forma semelhante, a música “Ao teu lado” ruma no sentido oposto, estabelecendo metáforas entre o processo artesanal do crochê com a forja da pessoa ao nosso lado. Negona dos Olhos Terríveis, por sua vez, tem um papel importante na história da música popular brasileira e nas formas de retratar mulheres negras. Sem conotação sexual sobre quadris, melanina, cintura, ginga e rebolado, e de forma poética, bonita e contemplativa, Liniker coloca a negona de olhos terríveis como personagem principal. Esta negona arranca de si a solidão com um banho de mar quando encontra a possibilidade de descanso renovador e uma viagem gostosa fora da época de férias. E para além do quadril de rebolar sonhos, da boca que te embebeda e do farol que cega os olhos de quem vê, seu coração é doce. 

Com estas breves reflexões, tive como objetivo fomentar provocações sobre a forma como percebemos a nós mesmas e de que maneira nos dispomos à relações, bem como o quanto percebemos e reconhecemos o valor do nosso amor e do nosso tempo. Liniker já disse muito bem que não é preciso coragem para estar ao nosso lado, então vale os questionamentos: quem estamos permitindo estar ao nosso lado? A quem, ou a qual relação, nós nos prendemos? De que forma e com o que permitimos que a outra pessoa nutra a relação conosco? Reconheço que mereço amor? Gosto muito da crueza e sinceridade que a cantora compõe, colocando raça no centro das suas narrativas sobre afetos sem que violência, negligência e abandono sejam suas temáticas principais e nem que sua existência seja limitada a isso. Afinal, é muito importante reconhecermos as desigualdades de raça e gênero que atravessam nossas vidas e moldam nossa sociabilidade; mas mais importante ainda é nos percebermos e nos definirmos para além da violência e do trauma.


Gabriela Costa é Cientista social pela Unicamp (2019-2022), analista de projetos e de dados em Geledés – Instituto da Mulher Negra, especialista em LAI para Organizações da Sociedade Civil e atualmente é mestranda em Antropologia Social (PPGAS-Unicamp) com pesquisa sobre estudos do Hip Hop, afropessimismo, música afro-percussiva, cultura afro-brasileira, atlântico negro, memória e identidade.

Trabalha desde 2021 com consultorias em pesquisa e gestão de projetos voltados, principalmente, para o campo do Hip Hop, raça, gênero e educação. Em 2022 especializou-se em análise de dados e desde então presta consultoria para empresas e organizações da sociedade civil fazendo levantamento e análise de dados para diagnóstico de contexto, produção de evidência e acompanhamento de políticas públicas. Em 2023 compôs o GT sobre ações afirmativas raciais e dados abertos para a elaboração do 6° Plano de Ação Nacional em Governo Aberto.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

+ sobre o tema

A experiência de ser o único negro no meio profissional

Essa experiência ocorreu alguns anos depois da minha graduação...

Desafios da educação Quilombola e anti-racista no Brasil contemporâneo.

Os quilombos foram a principal instituição a realizar a...

O pensamento anticapitalista de Martin Luther King Jr.

Lembro, quando tinha uns cinco anos, de ter interrogado...

para lembrar

Eu nos quero vivos

Quando eu era criança minha mãe me definia como...

Cheia de Delicadezas

Certa vez ouvi como resposta “ela é cheia de...

Seguir Movendo, seguir vivendo, é tudo pra ontem!

Enfim chegamos a um ano da Coluna Negras que Movem! Uma coluna assim como nós mulheres negras, diversas, com múltiplas visões e conhecimentos, intensas,...

A Sociedade e Nós

Se a história não reparar os séculos a fio de sofrimento e segregação, nós permaneceremos no campo de batalha, onde empunharemos as nossas palavras....

O que aprendemos com as pretinhas da ginástica artística nessas olimpíadas

Que as Olimpíadas estão levando nossos nervos e resgatando o que restou do nosso patriotismo (ou quase isso), todo mundo sabe. Mas não tem...
-+=
Geledés Instituto da Mulher Negra
Privacy Overview

This website uses cookies so that we can provide you with the best user experience possible. Cookie information is stored in your browser and performs functions such as recognising you when you return to our website and helping our team to understand which sections of the website you find most interesting and useful.