No luto há luta

Não quero ser a comentarista que chora e se desespera e brada contra a necropolítica de segurança nossa de cada dia. Os assassinatos de Kathlen Romeu, oitava grávida abatida a tiros no Grande Rio em cinco anos, e do bebê que ela nem teve a chance de descobrir se era Maya ou Zayon me alcançaram intimamente. Sou filha da mãe negra, como a jovem gestante cuja vida foi interrompida no quarto mês de gestação. Como Jaqueline Lopes, sou mãe da filha negra nascida em 1996. Como dona Sayonara de Oliveira, sou avó de uma criança negra. Cresci num conjunto habitacional do subúrbio, conheço o medo da violência cometida por criminosos e policiais. Experimentei a mobilidade social pela educação e festejei o diploma de minha cria, tal como os parentes da moça recém-formada em design de interiores, agora silenciada.

Das coincidências que atravessam a vida das famílias negras brasileiras, brotaram as lágrimas que não pude controlar em participação ao vivo no “Estúdio i” da GloboNews. Chorei porque dor e indignação não foram suportáveis a olhos secos. Desabei porque o Rio de Janeiro tornou-se estado de luto permanente. Sendo uma jornalista dedicada à cobertura de economia e temas sociais, por dever cidadão, mais que profissional, precisei me enfronhar nos indicadores de segurança pública. Se o Brasil é o país em que todo mundo é um pouco ministro da Fazenda e técnico de futebol, é hora de sermos também secretários de Segurança. A violação do direito à vida, o mais importante dentre todos, alcançou nível inaceitável, em particular entre a população negra e favelada. Tem pele preta ou parda a maioria das vítimas de letalidade violenta, mortes por intervenção de agentes do Estado, feminicídio. A sociedade que se emocionou com os protestos contra o assassinato do negro George Floyd, nos EUA, tem o dever de se indignar e exigir mudanças aqui, porque asfixiados também estamos nós.

Em quase um ano e meio de pandemia, a mais grave em um século, dediquei sistematicamente este espaço à denúncia de abuso, injustiça, desigualdade. Cobrei providências, empatia, compaixão. Foram tantas camadas de dor que perdi a prática de escrever sobre coisas boas. Dedicar dias e noites, coração e cérebro a elaborar sobre o mal é exaustivo, adoecedor. Vez em quando, me pergunto por que insisto. A resposta é que há gente a sonhar, trabalhar e lutar contra a brutalidade. Quando a Covid-19, além de doença e morte, trouxe a fome, organizações sociais do Brasil inteiro se mobilizaram para arrecadar recursos, comprar e distribuir alimentos. Outro tanto do país se ocupou de pressionar e de se alinhar a parlamentares pelo auxílio emergencial. Pesquisadores se desdobraram em conhecimento para enfrentar crise sanitária e desgoverno.

Em março passado, sociedade civil, líderes religiosos e comunidade científica, Fiocruz incluída, se uniram no movimento Rio pela Vida. Cobram de autoridades combate à pandemia, orientam a população sobre redução de danos. Anteontem, quando a cidade chorava por Kathlen, voluntários distribuíam máscaras PFF2, as mais seguras, na Central do Brasil, numa tentativa de livrar da doença o povo que precisa se aglomerar no transporte público. O laboratório Merck doou cem mil unidades à Fiocruz para a ação, que se repetirá em estações de metrô e BRT.

Também é parte da iniciativa a máscara criada por Lisandra Risi, doutoranda em tecnologias de saúde na UFRJ. Cria de Ramos, subúrbio carioca, professora na Uerj, ela elaborava tese sobre abastecimento de materiais para o réveillon carioca quando a pandemia pôs fim à festa. A pesquisa migrou para um protótipo de máscara segura, antes de a ABNT divulgar as diretrizes ergonômicas locais. Lisandra contou com a mãe, dona Luci, costureira, para elaborar o modelo com três camadas de tecido e uma de elemento filtrante de celulose, mas pode chamar de filtro de café.

A invenção passou, primeiro, pelo teste do palito de fósforo: se o sopro apagar a chama, não há proteção.

— O fósforo apagou mesmo com as três camadas de tecido. Com a camada adicional do filtro de café, não. Bom sinal — conta a pesquisadora.

O segundo teste foi com desodorante aerossol. Sucesso de novo. Cientista brasileira, ela precisou de financiamento coletivo para bancar o teste de permeabilidade do ar em laboratório do Senai/CETIQT, referenciado pela Anvisa. Submeteu modelos sem filtro e com a quarta camada em celulose e SMS, material de equipamentos médicos.

— A conclusão foi que o modelo com três camadas de tecido e uma intercalada de filtro de café 102 se equipara às N95 ou PFF2. E cada filtro são duas máscaras — festeja.

A enfermeira defende a tese no dia 24. O pedido de registro no Inpi está encaminhado. A invenção foi batizada de LisLu20, sílabas iniciais de mãe e filha combinadas aos 200 anos de nascimento de Florence Nightingale, pioneira da enfermagem. O Rio pela Vida agora busca apoio para produzir as máscaras em cooperativas de costureiras em comunidades cariocas. No luto, há luta. Por isso, insistimos.

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