O amigo de Nova York

Ele não conhecia a situação do Brasil e, claro, ficou chocado com o número de negros mortos no país

Por Flavia Oliveira Do O Globo

Foto: Marta Azevedo

Saíramos, eu e minha filha, Isabela, da noite de calouros do Apollo Theater, a sala de música que revelou boa parte do panteão de ídolos da música negra americana, incluindo Ella Fitzgerald, Michael Jackson, Stevie Wonder, James Brown e Jimi Hendrix. A caminho do metrô, na noite de temperatura amena do outono nova-iorquino, passamos por uma banca de agasalhos e camisetas. Eram peças da campanha Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre), um movimento da sociedade civil afro-americana contra os assassinatos de negros e a desigualdade racial no Judiciário dos EUA. Paramos. Eram 11h da noite no Harlem. Stan se aproximou para o que seria uma venda. Foi mais que isso.

Stan é um negro americano de sorriso largo, com cerca de 1,75m de altura, ligeiramente acima do peso. Usa boné e ganha a vida como ambulante. Tem seus 40 anos. É dono de três bancas no Harlem; mora no Brooklyn. É capitalista do comércio de rua e ativista, bem informado que está sobre o que significa ser negro num país em permanente tensão racial.

Enquanto vende camisetas, ele divulga a campanha, lançada há três anos, após a absolvição de George Zimmerman, assassino de Trayvon Martin, um adolescente negro de 17 anos, em Sanford, na Flórida. Nacionalmente, o movimento ganhou força com os protestos pela morte de Michael Brown, em Ferguson, no Missouri. O jovem, de 18 anos, desarmado, foi baleado por um policial branco, Darren Wilson. O processo acabou arquivado, o que detonou uma onda de manifestações contra a violência policial nas principais cidades do país. O problema entrou na agenda política e hoje é tema da campanha presidencial. Em debates e entrevistas, a democrata Hillary Clinton e o republicano Donald Trump têm sido questionados sobre a violência racial.

Neste ano, o movimento BLM chegou ao Reino Unido. Numa das ações de mobilização, os ativistas conseguiram interromper operações no Aeroporto de Londres. No mês passado, durante o Fórum Awid, encontro mundial de feministas, na Costa do Sauípe (BA), militantes negras brasileiras se reuniram com Gay McDougall, membro do Comitê da ONU para Eliminação da Discriminação Racial, e com uma líder do BLM britânico, para chamar atenção internacional para as estatísticas de homicídios de jovens negros no país. A intenção é atrair apoio externo para a implantação do Pacto Nacional pela Redução dos Homicídios, promessa nunca cumprida pelo governo. Segundo o Mapa da Violência, há cerca de 30 mil assassinatos por ano de brasileiros de 15 a 29 anos; oito em dez têm pele preta ou parda. É crescente também o número de mortes na faixa dos 16 e 17 anos.

Stan não conhecia a situação do Brasil. Como qualquer estrangeiro que se depara com os números macabros, duvidou: “Trinta mil mortes? Trinta mil?”. Sim, não ouvira errado. A empatia imediata do interlocutor externo contrasta com a apatia, quase indiferença, da sociedade brasileira. Aqui parece natural o país integrar o grupo das dez nações com as maiores taxas de homicídio de jovens do planeta. Isso sem estar (formalmente) em guerra.

Três dias depois, voltamos ao Harlem e, de novo, encontramos Stan. Buscava uma segunda camiseta da campanha para engajar o marido; Isabela, um casaco de Malcolm X, líder icônico do movimento pelos direitos civis dos negros nos anos 1960, junto com o pastor Martin Luther King Jr. Tal como o reverendo, foi assassinado. Conversei com Stan sobre o radicalismo do discurso de Malcolm X, em comparação a Luther King. Meu amigo rebateu: “Ele não era extremista. Apenas lutava pelo que acreditava. Caucasianos fizeram isso por toda a História e não são chamados de extremistas”. Concordei.

Compramos o casaco com a foto de Malcolm X, um dos heróis mundiais da luta por igualdade de direitos. Stan se despediu com duas palavras: “peace and blessings” (em português, paz e bênçãos). Prometeu vir ao Rio de Janeiro, a cidade olímpica. Quer visitar uma favela, “o lugar onde vivem os negros brasileiros”, lembrou. Não pude desmentir. Dois em três moradores de comunidades populares cariocas se autodeclaram pretos ou pardos.

Numa parada pela região da 34th Street, a sacola ficou para trás numa estação do metrô. Malcom X foi parar em outras mãos, como a nos indicar que ideais de igualdade não pertencem a um só dono. Estão por aí a circular. Um dia, hão de alcançar toda a humanidade.

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