O caso Marielle Franco e a reação da ONU

Marielle Franco, vereadora eleita na cidade do Rio de Janeiro, e seu motorista, Anderson Gomes, foram brutalmente assassinados no dia 14 de março. O fato chocou não apenas o Brasil, mas também despertou a atenção da maior organização internacional do mundo. As mortes de Marielle e Anderson ganharam a atenção do sistema de direitos humanos da ONU.

Considerando a velocidade padrão de ação desse sistema, as respostas foram emitidas rapidamente e, além disso, o tom das reações vem gradativamente crescendo, mostrando o tamanho da repercussão do caso.

Apenas um dia após o ocorrido, a porta-voz do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, Liz Throssell, se pronunciou e, nesse pronunciamento, tratou a vereadora Marielle como defensora de direitos humanos. É importante salientar que a proteção a defensores de direitos humanos é uma agenda importante dentro do sistema ONU. Na ocasião, a porta-voz não falou em execução, mas em assassinato (killing). Vale dizer que, no dia seguinte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA também publicou uma nota contundente na qual não deixou de mencionar a intervenção militar no RJ, sobre a qual já havia expressado preocupação anteriormente. A publicação da Comissão falou também em assassinato (murder), e não em execução.

No dia 20 de março, durante a 37ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, momento solene que reúne chefes de Estado e embaixadores em Genebra, uma articulação de ONGs maioritariamente do Sul Global fez um pronunciamento em plenário, chamando a atenção das várias delegações presentes no momento. Esse pronunciamento destacou também o fato de Marielle ser uma política democraticamente eleita cujo foco de atuação recaía sobre racismo, violência policial sofrida por jovens negros nas favelas do RJ e empoderamento de mulheres negras e comunidade LGBTI. Salientou também seu envolvimento com a comissão de monitoramento à intervenção que ocorre no RJ. Três elementos importantes sobre essa iniciativa das ONGs no Conselho de Direitos Humanos podem ser destacados. Primeiro, esse pronunciamento foi apoiado formalmente por organizações ligadas a direitos humanos, de forma mais geral, mas também de direitos de mulheres, negras e negros e comunidade LGBTQI, de forma mais específica, chegando a mais de 100 entidades. Essa pluralidade mostra o tamanho da repercussão da morte de Marielle e evidencia a interseccionalidade de sua combativa atuação e de sua condição enquanto vereadora ativista de direitos humanos pobre, negra, mulher e lésbica. Segundo, conhecedoras do sistema e estrategicamente em harmonia com o enquadramento dado pela nota da porta-voz do Alto Comissariado, as ONGs que conduziram esse processo qualificaram Marielle, desde o início do seu pronunciamento, como uma defensora de direitos humanos. Conforme dito acima, essa é uma categoria importante no sistema ONU e em relação à qual o Brasil é sistematicamente criticado, tendo em vista as altas taxas de assassinatos de defensores e defensoras no país. Terceiro, pela primeira vez dentro de um espaço formal da ONU (ainda que por ONGs e movimentos sociais), aventou-se explicitamente a hipótese da execução extrajudicial, ou seja, uma execução cuja autoria recairia, por ação ou por omissão, sobre agentes do Estado.

Em 23 de março, em frente às Nações Unidas, em Genebra, como noticiado pelo Nexo, um protesto com mais de 300 pessoas foi organizado a fim de cobrar providências sobre o caso Marielle, alcançando incomum repercussão nos jornais suíços.

Na última segunda, dia 26, menos de duas semanas do assassinato, Relatores Especiais do sistema de direitos humanos da ONU publicaram uma nota sobre o caso. Os Relatores Especiais são especialistas não remunerados e não são funcionários da ONU, mas recebem suporte da organização, pois são instituídos mediante aprovação dos países no Conselho de Direitos Humanos da organização. Nessa nota, esses especialistas evidenciaram não só todos os campos de atuação da vereadora carioca, classificando-a novamente como uma defensora de direitos humanos, mas também teceram fortes críticas à intervenção no estado do Rio de Janeiro. Para eles, o assassinato de Marielle é alarmante na medida em que ele visa intimidar todos aqueles que lutam pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito no Brasil. Sobre essa nota, alguns outros pontos importantes também merecem ser destacados. Primeiro, ela foi assinada por dez Relatores Especiais. A despeito de cartas conjuntas entre alguns Relatores estarem se tornando uma iniciativa mais comum no sistema de direitos humanos da ONU, a quantidade de dez relatores chama realmente atenção. Segundo, não só o número de relatores é relevante, mas também a especialidade de cada um dos seus mandatos, pois juntos expressam a interseccionalidade representada por Marielle – violência contra a mulher, racismo, discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero, situação de defensores de direitos humanos, extrema pobreza, direito à moradia adequada e execução extrajudicial, sumária ou arbitrária. Terceiro, a presença da relatoria sobre execução extrajudicial, sumária ou arbitrária, uma das mais tradicionais e estabelecidas do sistema ONU, não deve passar despercebida, pois, ao falar da morte de Marielle no penúltimo parágrafo do texto, os Relatores usam o termo execução.

A escolha desse termo não é trivial. No seio do sistema de direitos humanos da ONU, execução diz respeito a mortes ilegais, ou seja, refere-se a flagrante violação do direito à vida, possivelmente um dos direitos mais cobertos pelas diferentes normas internacionais, às quais o Brasil aderiu amplamente. Mas, mais do que isso, de acordo com o mais recente protocolo da ONU sobre o tema, execução é um assassinato ilegal que ocorreu por ação ou por omissão de forças do Estado. Isso inclui, por exemplo, mortes causadas por forças policiais ou militares ou por grupos, milícias ou “esquadrões da morte” suspeitos de agir sob a direção ou sob a aquiescência do Estado. Os relatores optaram por não aprofundar a discussão sobre execução na nota, deixando estrategicamente aberta a possibilidade de qualificá-la no momento em que provas surgirem ou diante do não avanço das investigações. A propósito, provavelmente, a escolha de publicar essa nota conjunta neste momento foi pragmática no sentido de pressionar pelo avanço da investigação e para deixar claro às autoridades brasileiras que os olhos do sistema de direitos humanos da ONU estão atentos ao que ocorre sobre esse caso.

Enfim, a rápida reação da ONU deriva de toda a complexidade e gravidade que envolve o episódio. Tanto o Conselho de Direitos Humanos quanto o Alto Comissariado monitoram essa pauta de proteção aos defensores de direitos humanos. Esse é um item bem estabelecido na agenda do sistema e em relação ao qual o Brasil é um constante alvo. Além disso, a velocidade e magnitude da reação provavelmente se relacionam também com o trabalho do escritório da ONU no Brasil, que mantém desde o ano passado a campanha “Vidas Negras Importam”. Sendo assim, como o sistema ONU já possuía acúmulo e posição prévia sobre o assunto, provavelmente os canais institucionais de transmissão do Brasil para Genebra (onde está a sede do Alto Comissariado e do Conselho) funcionaram rapidamente. Por fim, é importante mencionar que a intervenção no Rio de Janeiro já vinha sendo motivo de preocupação do Alto Comissário, expressada publicamente em seu pronunciamento no Conselho de Direitos Humanos uma semana antes da morte de Marielle. Ainda que não tenha como obrigar efetivamente o Brasil a fazer algo, como realizar rápida, independente e imparcial investigação sobre o caso, o sistema de direitos humanos da ONU deixa muito claro ao Brasil que está atento ao caso e disposto a repercuti-lo internacionalmente como forma de pressão e constrangimento ao país. Marielle Franco era potente, preciosa e necessária ao Brasil, tal como sua atuação interseccional. Parece que a ONU também percebeu isso.

* Matheus Hernandez é pesquisador visitante na Universidade de Columbia – Institute for the Study of Human Rights -, e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal da Grande Dourados

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