Há exatamente um mês fora brutalmente assassinada em uma emboscada no Rio de Janeiro uma mulher, preta, lésbica, favelada, desta vez uma parlamentar. O crime ainda segue sem resposta das autoridades competentes. Desde o dia 14/03/2018 o mundo inteiro está comovido com a morte da líder política e militante dos direitos humanos que sempre fez questão de demarcar gênero, raça, orientação sexual e classe. Marielle Franco representa a solidariedade e a congruência das forças em tempo de sectarismo e intolerância. Simboliza também a ruptura do silêncio dos que há muito tempo gritam e ainda são silenciados e oprimidos.
Eleita por mais de 46 mil votos na segunda cidade mais populosa do Brasil, Marielle Franco fizera do seu “mandato coletivo” (como gostava de dizer) um incômodo e um questionamento constante às prioridades políticas, às estruturas, instituições, narrativas e práticas conservadoras do Rio de Janeiro e do país. Fugindo da obviedade de pautas econômicas fundamentalistas, Marielle e sua equipe superavam os discursos de instrumentalização da pobreza, e discutiam, além das pautas estruturais, pautas sociais, identitárias e de direitos humanos, trazendo como principais causas o enfrentamento ao racismo, ao machismo, à homofobia e à exploração. O enfrentamento à violência contra a mulher, o estímulo à representatividade dos grupos oprimidos nos espaços de poder, e a discussão de pautas que desvendassem a racialização das propostas políticas e econômicas constituíam as principais estratégias de atuação de Marielle.
Trocar as lentes para se observar a sociedade. Enfrentar os tabus. Superar os mitos. Um exercício em três passos que traz como proposta, ao mesmo tempo simples e transgressora, a capacidade de enxergar, escutar e agir com os outros. Em uma sociedade ideológica e estruturalmente desigual, constituída sob as bases coloniais escravocratas e patriarcais, a inserção objetiva das pessoas encontra-se refletida em suas diferentes condições de vulnerabilidade, que vão além dos piores índices de pobreza, englobando a baixa expectativa de vida, os baixos salários, os empregos precários, os índices de analfabetismo, de violência e de morte, as formas de percepção e representação dessas pessoas na sociedade, as políticas públicas direcionadas (ou não) a elas, etc.
A construção histórica do Brasil é marcada por experiências de exclusão que se sobrepõem, determinando o modo desigual como os indivíduos vivenciam as suas singularidades a depender dos eixos de subordinação ao qual estão submetidos. Façamos um pequeno exercício observando a sociedade brasileira a partir da sua estruturação racial.
Trocar as lentes
O Brasil, último país a abolir oficialmente a escravidão, possui uma população expressiva (54%) de negros e negras. Com um projeto de país sedimentado sob hierarquias raciais, fomos adeptos ao colonialismo escravocrata, executamos políticas eugenistas, promulgamos legislações racistas, construímos narrativas pautadas em diferenças hierárquicas raciais, e desenvolvemos o “racismo à brasileira”, negando a nossa história e falseando uma memória em prol do mito da democracia racial.
Enfrentar os tabus
O parlamento nacional brasileiro é comporto majoritariamente por homens brancos (71%) e por menos de 10% de mulheres, sendo que desses 10% mais de 8% são mulheres brancas. A renda dos negros corresponde apenas a 57,4% da renda dos brancos (IBGE). 64% da população penitenciária nacional é composta por negros (INFOPEN, 2017). Com relação à violência de gênero, entre 2003 e 2013, observamos que o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período de tempo (Mapa da Violência, 2015). A Lei Maria da Penha (nº 11.340) teve um impacto na redução de vítimas entre a população feminina branca (2,1%), mas, entre as negras, a violência doméstica aumentou em 35% desde a criação dessa legislação, em 2006. De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras (Atlas da Violência, 2017 – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fórum Brasileiro de Segurança).
Superar os mitos
O mito da democracia racial não se sustenta, mas se propaga sobretudo pela negação do racismo enquanto um problema social brasileiro, o que dificulta o seu enfrentamento. A instrumentalização da pobreza a partir da pauta econômica é um dos instrumentos utilizados para escamotear as demais pautas sociais, identitárias e democráticas. É sintomático perceber que mesmo apresentando dados tão assombrosos com relação à qualidade de vida (e de morte) dos negros e negras no país, o país não se interrogue a respeito de políticas públicas de combate ao racismo e voltadas especificamente para a população negra.
A preponderância das análises econômicas em detrimento das análises sociais, incluindo a racial, apresenta-se como sintoma de manutenção de uma estrutura neoliberal, violenta, anti-democrática e racista. Primeiro, por conta da percepção unifocal e deturpada da realidade. As lentes a-históricas, inócuas e potencializadas pelo desejo de invisibilização das discussões sobre direitos humanos e especificamente sobre o racismo no país, faz com que muitos vejam esses problemas como processos de vitimização. Segundo, porque essa percepção deturpada favorece a criação de tabus. Estes, potencializam a percepção parcial e orientada da realidade, o que contribui, por exemplo, para a hipervalorização de discursos como o discurso meritocrático em detrimento das políticas redistributivas que impedem o enfrentamento das mazelas sociais. Em terceiro lugar, e não menos importante, destacamos que o país não possui uma experiência democrática madura, que está frequentemente comprometida pelos arbítrios e corrupção dos setores público e privado que lucram material e simbolicamente com as estruturas de poder estabelecidas. De maneira arbitrária, a falsa atribuição de objetividade que se dá à economia e à meritocracia, é utilizada para ignorar os seus usos políticos e manter estruturas de opressão.
O enfrentamento ao racismo, assim como o enfrentamento ao machismo, à homofobia e à exploração, ainda não são programas de Estado no Brasil. Pelo contrário, o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, é um fenômeno que evidencia o descompromisso do Estado, sobretudo de um governo que interrompeu novamente a recente e abalada experiência democrática do país e que teve como uma de suas primeiras medidas a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH). Esse crime é uma execução política que marca a falência de uma sociedade que ainda precisa trocar as lentes para se observar; enfrentar os tabus e superar os mitos.
“Enxergar, escutar e agir com os outros”
Esse crime merece um direito de resposta eficaz, que só será possível a partir do interesse e da busca por uma maturidade política democrática que se oponha às mais distintas opressões. Contra o racismo, contra o machismo, contra a homofobia, contra o fascismo, contra o arbítrio, o terror, a intolerância e o medo. Que os direitos humanos sejam pauta perene em busca de uma experiência democrática de alteridade na qual possamos exergar, escutar e agir com os outros. Que a imponência e a doçura de Marielle continuem aquecendo os corações revolucionários com força e ternura.
Marielle Franco tinha como lema a frase “eu sou porque nós somos”. Sim, nós somos! Marielle vive em nós!
* Advogada e artista, formada pela UNEB e pela UFBA, respectivamente, doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas na UFF, e em Direito pela UFRJ, mestre em Criminologia pela Faculdade de Direito e Criminologia da Université Catholique de Louvain. Participa de coletivos e grupos de pesquisa em Criminologia, Sexualidade, Direito, Raça e Democracia. Em Criola é pesquisadora e realiza a consultoria “Sistema de Justiça em Foco: dinâmicas de reprodução, combate ao racismo e promoção da igualdade racial” para o Fórum de Justiça.
Assine a petição: Justiça para Marielle Franco
Foto em destaque: Reprodução/ Alyne