É quase impossível ter argumentos com quem considera que algumas vidas valem mais que outras, que o direito de ir à escola ou ao médico é mais prioritário para uns que para outros, que sair de casa e voltar em segurança é mais vital para uns que para outros, que viver sem sentir medo é um privilégio. Quando Baco Exu do Blues canta “eu sinto tanta raiva que amar parece errado”, eu entendo totalmente.
E sinceramente não estou procurando novos argumentos. Eu já disse e escrevi tudo que poderia e vou me repetir em vários pontos desta coluna, o que me deixa com ainda mais raiva, porque odeio ser repetitiva.
A verdade é que a gente ri, faz meme, campanha e camiseta com frases como “a calma do carioca me assusta” ou “RJ não é Disney”, mas tudo isso é muito triste. É triste como, se você é uma pessoa de origem popular, precisou normalizar certas violências, mas não pode ser normal um policial apontar um fuzil para a cara de um cidadão ou cidadã. Passei por isso muitas vezes quando vivia no Rio e, depois de muitos anos, passei novamente agora em março, numa blitz no Rio Comprido. Minha mente fingiu costume, mas meu corpo reagiu, declarando que aquilo nunca foi normal e que agora o “costume” se perdeu.
A gente vai precisar de muitos anos para desnaturalizar que nossas crianças e jovens saibam reconhecer o som de tiros e não pensem que viver com medo é o normal. Esta semana acontece um passo importante para este processo, a votação no STF sobre a legalidade da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635. Conhecida como ADPF das Favelas, a arguição discute ações para reduzir a letalidade policial em operações policiais nas comunidades do Rio. A votação aconteceria semana passada, mas o ministro Luís Roberto Barroso considerou o tema “especialmente árduo” e pediu mais tempo para chegar a uma solução consensual entre os magistrados.
Para quem não entendeu, a ADPF não impede as operações policiais (seria meu sonho?), mas diz que elas precisam acontecer sem desrespeitar os Direitos Humanos e a Constituição brasileira, garantindo, por exemplo, o funcionamento de serviços essenciais para a população, como escolas e postos de saúde. Ou seja, a favela faz parte do país e não é território de exceção.
O que deveria nos assustar como sociedade, e a mim me assusta muito, é o fato de o Estado declarar abertamente que, em pleno 2025, a Secretaria de Segurança da segunda cidade mais rica do país não consegue atuar com inteligência, tecnologia e legalidade em diferentes regiões.
Como escreveu Eliana Sousa Silva, diretora fundadora da Redes da Maré, a ADPF coloca luz num vespeiro. Em nota divulgada em 4 de março, ela escreve: “É dramático ver que não há consenso entre os entes federados para romper essa dinâmica de violências e, muito menos, atenuar danos e traumas de quem mora nas favelas. A construção de uma política cidadã, que dê conta da proteção do conjunto da população brasileira, independentemente da sua condição social, raça ou gênero, não pode depender de ciclos eleitorais, deve ser, sim, uma política de Estado.”
A questão é que o Brasil é um país construído em cima de um vespeiro de tamanho continental, e o que não falta são temas árduos. Não é fácil fazer um país, mas, mais uma vez citando Eliana, o que eu sei é que “a barbárie e o horror não podem prevalecer como método de trabalho.”