O funk e a memória das favelas do Rio de Janeiro

Raphael Calazans, 24, integrante do Coletivo Papo Reto, escreveu artigo onde defende o funk como o lugar de memória das favelas: “Por isso, na favela a memória é ativa. É bandeira de reivindicação do direito à vida. Ela recusa depositar num espaço a saudade e as lembranças. Não é possível ter passado, para quem não consegue garantir o futuro. Por isso o lugar da memória na favela é o presente. Um presente dado à vida. Embrulhado e animado pelo funk. Que dentro do pacote tem um coração. E nesse presente, tem um cartão, que é um convite: Somos convidados, todos nós, ao despertar a memória, viver. E se há algo de passado e de lembrança, é esse: O presente da memória, dado à vida, é um convite e uma lembrança para aquilo que somos e que nunca poderemos deixar de ser: Favelad@s. Com todas as narrativas, discussões e lutas que disso decorre”

Por *Raphael Calazans, para o Coletivo Papo Reto

No Brasil 247

Memória ativa: O funk é o museu

Se há um ponto de acordo, entre quem mora, quem pesquisa, quem luta, quem dorme, quem silencia, ou quem constrói e até aqueles que destroem, a vida em favela é esse: O vai e vem da vida, aqui, tem como marca a provisoriedade e a potencialidade. Dito por um professor: A dor e a alegria. Já por uma dupla antiga de Mc: “A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado”.

O ritmo da vida, é provisório, intenso e feliz, como a Joaquim de Queiroz no Alemão, ou a via Ápia da Rocinha: Cheia de gente, cheia de vida, cheia de gritos, mas também, às vezes, vazia, triste, terrivelmente calma e silenciosa. Ora, como num espaço como esse, há possibilidade de construção e afirmação de memórias?

Durante muito tempo acreditei que a casa da memória, era como um antigo barraco, na ponta de um morro, calmo e frio: Memória era aquilo do passado que fica congelado. É sempre o que foi. Quem já fui. Aquilo que fomos, ou o que morremos. A memória tinha a cara de museu: espaço em que quadros, objetos, fotos, vídeos e músicas, despertam a emoção da lembrança.

Sendo assim, a memória precisa de um tempo estático: passado. Um lugar: Calmo. Um rosto: sério, ou no máximo, com um sorrio metade triste, metade saudoso. E um tempo verbal: o pretérito, melhor dizendo, a vida que, como o último trem, partiu e não voltará mais. A memória, assim entendida, é o que desperta a lembrança e a congela e a guarda nos museus: sejam eles os clássicos, com os dinossauros, sejam os modernos: com os vídeos, roupas, e barracos.

Nesse sentido, como falar em memória num lugar extremamente fugaz, transitório, que engole o passado, chuta pra longe o futuro e vive intensamente o presente? Uma lição que aprendi com o Alemão e o funk, é que na pergunta a gente diz a resposta: A memória é o presente da vida. Um presente embrulhado e bonito. Dado a uma vida corrida e intensa. Quem embrulha o presente? O Funk. O que tem dentro da caixa do presente? O coração.

Explico melhor. Veja: A memória, diferentemente daquela clássica, ela não desperta a lembrança do que passou. Ela reivindica a vida e dá sentimento e sentido, para aquilo que se perdeu. Por exemplo, é imperativo da narrativa funkeira: Saudades eternas dos amigos(momentos, casas, lugares, afetos) que já se foram! A convocação da memória diante da dor da saudade, no funk, possui uma força e apelo reivindicativo da vida. É como se isso trouxesse de volta quem já foi. Ressuscitasse quem fomos. Convocasse, para o presente, da mesma Joaquim de Queiroz cheia de gente: Aquele sentimento antigo, para tomar caldo de cana na feira. A memória, na favela funkeira, não clássica, mas sim, favela tem disso: Ela não deixa, a lembrança dentro dos museus. E sabe porque não deixa? Porque o funk é o museu. E, assim, ele guarda e confere vivacidade a saudade, chamando ela para dentro do rádio, do Facebook, do Youtube e do baile. Assim, transforma a ausência em presença. Que não se perde, quando perdemos ao deixar os museus. Ela fica, se eterniza, e revive tudo aquilo que um dia morreu. O funk, não é um quadro, uma foto, um dinossauro, ou tudo aquilo que um dia foi. Funk é uma música. E cantá-lo significa reviver e dar vida a quem já fomos, aqueles que foram, e dizer o que queremos ser. Ele não deixa seu amigo se perpetuar num álbum. Ele o coloca no grito e na força do tamborzão. Só assim, é possível perceber, as ruas e becos, nervosas, moradas da dor e alegria, como espaços de potencialidade que supera a provisoriedade.

Por isso, na favela a memória é ativa. É bandeira de reivindicação do direito à vida. Ela recusa depositar num espaço a saudade e as lembranças. Não é possível ter passado, para quem não consegue garantir o futuro. Por isso o lugar da memória na favela é o presente. Um presente dado à vida. Embrulhado e animado pelo funk. Que dentro do pacote tem um coração. E nesse presente, tem um cartão, que é um convite: Somos convidados, todos nós, ao despertar a memória, viver. E se há algo de passado e de lembrança, é esse: O presente da memória, dado à vida, é um convite e uma lembrança para aquilo que somos e que nunca poderemos deixar de ser: Com todas as narrativas, discussões e lutas que disso decorre.

O funk, na verdade, colore e guarda a memória. Mas não de forma física e em caixas. É cantada, compartilhada, triste e alegre, movimentada e vazia, podendo ser elétrica como o Nego do Borel, ou mansa como O Mc Marcinho. A memória é um funk, que conta e reivindica as nossas vidas, culturas e raízes, que nunca morre.
*Raphael Calazans, 24, graduando em Serviço Social pela UFRJ, é MC, funkeiro e integrante do Instituto Raízes em Movimento e do Coletivo Papo Reto.

+ sobre o tema

Mostra em São Paulo celebra produção de cineastas negros no Brasil

Uma seleção de filmes brasileiros realizados por cineastas negros...

O dia em que os deputados brasileiros se negaram a abolir a escravidão

Se dependesse da vontade política de alguns poucos, o...

para lembrar

Mostra em São Paulo celebra produção de cineastas negros no Brasil

Uma seleção de filmes brasileiros realizados por cineastas negros...

O dia em que os deputados brasileiros se negaram a abolir a escravidão

Se dependesse da vontade política de alguns poucos, o...
spot_imgspot_img

Feira do Livro Periférico 2025 acontece no Sesc Consolação com programação gratuita e diversa

A literatura das bordas e favelas toma o centro da cidade. De 03 a 07 de setembro de 2025, o Sesc Consolação recebe a Feira do Livro Periférico,...

Mostra em São Paulo celebra produção de cineastas negros no Brasil

Uma seleção de filmes brasileiros realizados por cineastas negros ou que tenham protagonistas negros é a proposta da OJU-Roda Sesc de Cinemas Negros, que chega...

O dia em que os deputados brasileiros se negaram a abolir a escravidão

Se dependesse da vontade política de alguns poucos, o Brasil teria abolido a escravidão oito anos antes da Lei Áurea, de 13 de maio de...