O ministro, a estudante e a democracia que desejamos

O que o discurso de posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE tem a ver com o discurso da estudante negra Manuela Morais realizado no 11 de Agosto

FONTEPor Kátia Mello, de Geledés - Instituto da Mulher Negra
Manuela Morais, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, durante manifesto organizado pela Fiesp para leitura de carta em defesa da democracia/Foto: Natália Carneiro

O discurso do ministro Alexandre de Moraes realizado em momento de sua posse na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesta terça-feira 16, e o de Manuela Morais, estudante negra, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de São Francisco (USP), feito uma semana antes, na quinta-feira, 11, tiveram plateias muito semelhantes formadas por uma maioria de homens brancos, engravatados. Tanto a fala do ministro quanto a da estudante tinham um objetivo em comum: ressaltar a significância do Estado democrático, diante das ameaças de golpismo do atual governo (ou desgoverno, como preferem alguns).  

Alexandre de Moraes, um homem branco, se graduou na mesma Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da qual é professor, onde Manuela estuda. Porém Manuela chegou ali graças às cotas universitárias.  “As ações afirmativas impactaram a minha vida de uma forma muito positiva, ajudaram a minha entrada e a de muitos outros iguais a mim na São Francisco e nas universidades como um todo, por isso a intersecção entre democracia e racismo”, contou ela à reportagem do Geledés.   

Luiz Gama, advogado ícone do abolicionismo que já falava em democracia e liberdade de expressão /foto: WIKICOMMONS

Moraes foi ovacionado algumas vezes, Manuela também. Porém Manuela foi ovacionada, onde ela bem lembrou, no território “sobre o qual Luís Gama aprendeu a lutar por um país sem reis e sem escravos”. O abolicionista baiano Luís Gama (1830-1882), que comprou sua própria alforria e foi um advogado brilhante, também se formou no Largo São Francisco, a mesma escola de Moraes e Manuela, ingressando nela muitos anos antes, em 1850. E atentem: Gama, em meados do século 19, já escrevia sobre democracia plena e liberdade de expressão, como indicam muitos de seus artigos de imprensa e manuscritos, que constam da coleção Obras completas, que reúne mais de 700 textos do ícone abolicionista.   

Ministro Alexandre de Moraes assumiu a presidência do TSE em 16 de agosto de 2022/ Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Novamente voltando ao discurso do ministro Moraes, ele ressaltou que a democracia é “uma construção coletiva de todos que acreditam na soberania popular e, mais do que isso, de todos que acreditam e confiam na sabedoria popular, que acreditam que nós – nós todos, autoridades do Poder Judiciário, do Poder Executivo, do Poder Legislativo – somos passageiros, mas que as instituições devem ser fortalecidas, pois são permanentes e imprescindíveis para um Brasil melhor, para um Brasil de sucesso e progresso”. 

Mas sobre qual coletividade o ministro se refere? A estudante Manuela, em sua fala direcionada à carta em prol da democracia que atingiu mais de um milhão de assinaturas no dia 11 de agosto, nos norteia sobre essa verdadeira coletividade. “Hoje, no entanto, surge como tarefa democrática a união de diversos setores da sociedade para defender a liberdade e os direitos pelos quais uma geração inteira de lutadores deu a vida para conquistar. É por essa razão que nos congregamos hoje. Além dessa tarefa, faz-se necessária uma nova carta aos brasileiros e brasileiras para atualizá-la frente a um novo paradigma de lutas que negros periféricos, uma nova intelectualidade que é fruto da escola pública, está colocada na atual realidade nacional. Se antes as universidades eram para poucos, hoje, novos rostos, cores e saberes diversificam os espaços de poder político, intelectual, no Brasil”, disse a estudante. E arrematou em meio a aplausos: “Nós, que éramos os outros, agora fazemos parte dessa nova carta. Somos jovens, das quebradas, das favelas”.  

Nós que éramos os outros, repito aqui, agora fazemos parte dessa carta. Esses “outros” eram os mesmos outros que o advogado Luiz Gama se referia nos idos de 1850. E hoje, como bem pontuou Manuela, não há mais como deixar de vê-los como integrantes da sociedade brasileira, em sua plenitude de direitos. Neste sentido, Manuela e não o ministro Moraes nos aponta em direção ao caminho da real democracia que almejam as diversas e múltiplas populações de nosso Brasil.   

Diz ela: “Dessa maneira, é preciso ousar sonhar e caminhar no sentido real da luta por uma democracia ainda inexistente nesse País. Não queremos a democracia da fome, a democracia das chacinas e tão pouco a democracia dos ricos. Queremos a antítese da democracia que termos hoje: a democracia da diversidade, dos trabalhadores, uma democracia real. Queremos a democracia dos povos, e todos os povos na democracia”.  

Para cantora, compositora e deputada Leci Brandão, que esteve presente no evento do Largo São Francisco e ouviu o discurso da estudante, o ato em prol da democracia naquele 11 de agosto é “um avanço, é a democracia voltando a pulsar” E completa: “Hoje é dia de renascimento. Porque houve uma atitude do povo brasileiro”. 

O filósofo, escritor e professor Silvio de Almeida, disse a Geledés que o “importante é saber se o que vai acontecer a partir de agora e se essa democracia vem em um sentido mais amplo. Não existe democracia se as pessoas passam fome, não existe democracia se a economia não dê conta das necessidades dos brasileiros, não existe democracia se os negros, indígenas, LGBTQ+ e mulheres continuam sendo mortos. Por isso é fundamental que este momento marque o início de uma discussão de um novo País. Que aqui se estabeleçam alguns marcos: de não à miséria, não ao autoritarismo, não ao racismo. Uma democracia se constrói assim, criando condições, práticas políticas que defendam, de fato, o povo brasileiro”, conclui Silvio. Já a líder indígena Sônia Guajajara diz ao Geledés que “o momento agora é de valorizar essa diversidade de povos e culturas, territórios que temos no Brasil”. E completa: “Não é mais possível pensar uma democracia sem a participação de todos os povos”. 

O discurso lido por Manuela Morais foi escrito com a participação dos também estudantes Erick Araújo, Heloisa Toledo, Christine Magri e Letícia Chagas, como ela revela a Geledés. “Nós sabíamos que como juventude tínhamos a tarefa de representar o novo perfil de estudantes do Brasil que estão ocupando as universidades cada vez mais, por isso saudamos a unidade da sociedade contra a ameaça de um golpe, mas ao mesmo tempo fomos além, apontando que queremos uma democracia popular e dos trabalhadores, uma democracia diferente da que temos agora”, disse ela.  Tão jovem, tão assertiva! Obrigada Manuela, sua voz ecoou o Estado democrático que tanto desejamos.  

Manifestantes em frente a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/Foto: Katia Mello
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