O Pioneirismo haitiano nas lutas pela liberdade no Atlântico

Quando falamos em liberdade, igualdade de direitos, cidadania, democracia, países europeus e os Estados Unidos são facilmente acionados como lugares pioneiros e espaços de protagonismo. A Revolução Americana e a Revolução Francesa são exemplos constantemente mobilizados para justificar uma “aspiração” quase natural desses países à liberdade e à igualdade. Porém, a pretensa universalidade do acesso aos direitos reivindicada por esses países é colocada em xeque quando observamos a ausência de debates raciais e de discussões sobre a abolição da escravidão nas demandas levantadas por esses movimentos. Durante a Revolução Francesa, poucas vezes a abolição da escravidão foi uma pauta real dos debates. Quando o assunto surgia na Assembleia, quase sempre puxado pelos membros da Societé des Amis des Noirs [Sociedades dos Amigos dos Negros], as discussões eram ambíguas e falavam mais sobre o fim do tráfico de escravizados e as relações econômicas com as colônias do que propriamente sobre o fim da escravidão.

O problema com as narrativas que atribuem direitos universais à Revolução Francesa ou o fim da escravidão à atuação da Inglaterra não é exatamente pelos elementos que elas não apresentam, mas sim pelos sistemáticos silenciamentos que provocam acerca de acontecimentos que, por suas características, desafiam a narrativa do pioneirismo europeu/branco. No mesmo período das revoluções francesa e americana, a Revolução do Haiti foi a única que, de fato, questionou o racismo dos impérios europeus, desafiou a falsa universalidade do acesso aos direitos da França e conseguiu desmontar o sistema escravista na ilha. Três anos antes da abolição do tráfico pela Inglaterra e três décadas antes do fim da escravidão nas ilhas britânicas no Caribe, o Haiti surgia como a primeira nação negra a tornar-se livre por uma revolta majoritariamente protagonizada por escravizados, com um exército que foi capaz de eliminar as tropas de Napoleão Bonaparte e ainda manter afastada as ameaças de guerra, da Inglaterra e Espanha. 

Se o pioneirismo da Revolução Haitiana foi o que possibilitou ao país acabar com a escravidão, foi também a ousadia de querer ser livre que causou o constante apagamento e do Haiti e da história do Haiti por parte das potências da época e com consequências até hoje que ultrapassam os debates historiográficos. Quando, em 1791, chegavam à França as primeiras notícias de que uma revolta de escravizados acontecia na ilha de São Domingos, a reação inicial era de descrença. Era impossível conciliar a percepção que se tinha dos negros com a ideia de uma revolução. Mas, entre 1791 e 1804, o avançar dos combates e a vitória do exército haitiano trouxeram consequências difíceis de ignorar. A Revolução Haitiana provocou alterações nunca antes vistas: criou um contingente de refugiados de guerra que se espalhou pelas ilhas do Caribe e o sul dos Estados Unidos; ameaçou o poder imperial da França, Inglaterra e Espanha nas Américas; colocou em dúvida a continuidade do tráfico de escravizados e, o mais importante, ofereceu uma alternativa de luta para as pessoas escravizadas, sendo visto como um exemplo de luta negra coletiva em nome da liberdade. 

Apesar do isolamento político e econômico imposto pelas potências ao Haiti, o projeto haitiano era muito mais ambicioso do que o mundo poderia conceber. Por isso, não quero trazer aqui apenas exemplos que reforcem o embargo a que o Haiti foi submetido, mas pretendo demonstrar a extensão do projeto de liberdade proposto pelos haitianos. Os efeitos da Revolução não se restringiam apenas ao que acontecia na ilha. Jean-Jac ques Dessalines, Sanité Belair, Alexandre Pétion, Henry Christophe e tantos outros revolucionários que lutaram pela independência pensaram o Haiti como um farol para liberdade em um mundo dominado por impérios escravistas. E, ao olhar para o século XIX, é possível enumerar alguns exemplos de como os governos haitianos agiram ativamente em nome da liberdade. 

O historiador haitiano Thomas Madiou relatou a passagem de Simon Bolívar, revolucionário venezuelano que liderou diversos processos de independência na América Latina, pelo Haiti em 1815. Bolívar chegou na cidade de Les Cayes, quando já estava em guerra contra a Espanha. No Haiti, Bolívar foi recebido pelo presidente Alexandre Pétion que lhe cedeu cerca de 2 mil fuzis, munição, comida e uma máquina tipográfica. Em troca, Pétion pediu que Bolívar proclamasse a abolição da escravidão nos territórios independentes. Embora tenha concordado com a promessa, Bolívar não foi capaz de cumpri-la. Além disso, o Haiti ainda foi excluído do 1º Congresso do Panamá, realizado em 1826 e que foi organizado pelo próprio Bolívar. A ausência do Haiti foi completada pela presença dos Estados Unidos e de outros países que, àquela época, ainda mantinham escravizados. Interessante notar aqui que o sentimento anti-haitiano era mantido com ideias racistas que circulavam na região

As ações haitianas em nome da liberdade não se restringiram aos espaços americanos/caribenhos. Em 1821, quatro revolucionários que lutavam pela independência grega, Adamantios Korais, Christodoulos Klonaris, Christodoulos Klonaris, Konstantinos Polychroniades e A. Bogorides, que se encontravam na França, escreveram para Jean-Pierre Boyer, presidente do Haiti, solicitando auxílio para a guerra de seu próprio país. Apesar de incapaz de fornecer o auxílio financeiro e bélico naquele momento, Boyer apoiou a revolução e, com sua carta de resposta, fez do Haiti o primeiro país que reconheceu a independência grega. Boyer prometeu enviar algum tipo de ajuda assim que possível. E, ao longo da carta, conectou as guerras de independência da Grécia e do Haiti como duas lutas parecidas, em busca de autonomia e liberdade: “Um caso tão belo e justo e, o mais importante, com os primeiros sucessos que o acompanham, não podem deixar os haitianos indiferentes pois nós, assim como os helenos, fomos por muito tempo submetidos a uma escravidão desonrosa e finalmente, com nossas próprias correntes, destruímos o líder da tirania”. 

Além de apoiar projetos nacionais de independência, o próprio Haiti se colocou como um espaço de recepção para pessoas negras e nativas de diferentes locais do mundo que desejassem viver em liberdade. Um desses acontecimentos foi o fim da escravidão do lado espanhol da ilha que veio com a unificação do território todo. Em 1822, Jean-Pierre Boyer conseguiu aproveitar um momento de instabilidade política na colônia de Santo Domingo e se uniu a alguns revolucionários que procuravam proteção militar e ajuda para promover a independência. Ao tornar toda a ilha o território haitiano, Boyer proclamou o fim da escravidão no lado espanhol. Mas, mesmo antes disso, em 1801, quatro representantes dominicanos assinaram a Constituição criada por Toussaint Louverture, que previa o fim da escravidão.

O governo de Boyer (1818-1843), um dos mais extensos do Haiti, colocou em prática um intenso projeto para imigrantes. Segundo o artigo 44 da Constituição de 1816, vigente durante o período de Boyer: “todos os africanos, indígenas e os seus descendentes, nascidos nas colônias ou em países estrangeiros, que possam vir a residir na República, serão reconhecidos como haitianos…”. A entrada de imigrantes negros e nativos era bem-vinda na ilha e facilitada pela sua legislação. A contrário da permanência de pessoas brancas. Desde a independência, em 1804, até a ocupação dos Estados Unidos, em 1915, nenhum branco poderia ter qualquer tipo de propriedade no Haiti. Isso era um artigo da constituição e que permaneceu apesar das mudanças de governo ao longo do século XIX. 

A partir de 1824, o presidente Jean-Pierre Boyer passou a oferecer terras e cidadania para os imigrantes exclusivamente negros, vindos dos Estados Unidos. Ao chegar no Haiti, as pessoas teriam acesso a um lote de terra, ferramentas e, após um ano, receberiam a cidadania haitiana. A fim de fazer seu projeto reconhecido, Boyer enviou Jonathas Granville como seu representante oficial para os Estados Unidos. Lá, Granville pode se reunir com afro-americanos de diferentes locais mas, aparentemente, foi na cidade de Baltimore, onde ele participou de reuniões na African Methodist Episcopal Church – Bethel [Igreja Metodista Episcopal Africana] e pode se encontrar com homens e mulheres negros e negras.

Importante ressaltar que o projeto de Boyer rivalizava com a proposta da Libéria. Se a escolha pela Libéria poderia, para alguns afro-americanos, parecer mais uma forma de colonização criada pelos brancos, a oferta haitiana, de um país negro, livre, governado por negros que tinham evidentes propósitos antiescravistas poderia ser mais atraente. Os projetos de imigração para a Libéria e o Haiti não eram interpretados como equivalentes, mas como alternativas opostas. Os ativistas negros nos Estados Unidos se apropriaram das políticas migratórias de Boyer para fortalecer o discurso em torno de um nacionalismo negro aliado com uma retórica de identidade diaspórica africana, e, ao mesmo tempo, lutavam contra a supremacia branca. Assim, a chegada de Granville a Baltimore, depois de ter passado por Nova York, Filadélfia e Boston, trouxe mais elementos para uma discussão que já existia entre os afro-americanos dos Estados Unidos. 

O objetivo desse texto não é o de opor uma imagem negativa do Haiti, construída pelos brancos, a uma construção idealizada de uma espécie de “Wakanda” do mundo real. Pretendo, com esses poucos exemplos, explorar as camadas de invisibilização sobre o Haiti e sobre a história haitiana e oferecer elementos para que possamos olhar o Haiti em toda sua potência e complexidade, assim como acontece com as outras nações. As disputas de narrativas em torno da Revolução Haitiana foi efetivo a ponto de fazer calar as reverberações e diminuir os efeitos da própria Revolução. Mas foi efetivo também quando criou outras narrativas, quando diminuiu a potência da organização militar dos escravizados e justificou a derrota de Napoleão através da febre amarela; quando acusou os exércitos haitianos de serem violentos demais; ou quando negou a participação política do Haiti no mundo durante o século XIX. Ao retirar essas camadas de um silenciamento, que emudece e isola, que imprime imagens de selvageria e violência, encontramos ações concretas em torno da liberdade, autonomia e independência que continuaram depois de 1804. 

Jean-Pierre Boyer assina o acordo com a França pelo reconhecimento da independência do Haiti
French. Fonte: DURUY, Victor. Histoire populaire contemporaine de la France. Tomo 1. Paris: Lahure, 1864.

 

 

Assista ao vídeo da historiadora Bethânia Pereira no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

 

Ensino Fundamental: EF08HI07 (Identificar e contextualizar as especificidades dos diversos processos de independência nas Américas, seus aspectos populacionais e suas conformações territoriais). EF08HI08 (Conhecer o ideário dos líderes dos movimentos independentistas e seu papel nas revoluções que levaram à independência das colônias hispano-americanas). EF08HI09 (Conhecer as características e os principais pensadores do Pan-americanismo). EF08HI10 (Identificar a Revolução de São Domingo como evento singular e desdobramento da Revolução Francesa e avaliar suas implicações). 

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos).

Bethânia Santos Pereira

Doutoranda do Programa de História Cultural da Universidade Estadual de Campinas; E-mail: [email protected]; Twitter: @betsoretorno.

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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