O silêncio das mulheres negras

FONTEELLE, por Winnie Bueno
A pesquisadora e escritora Winnie Bueno - Arquivo pessoal

Os últimos dias me exigiram um silêncio doloroso, mas necessário. Enquanto minhas caixas de entrada nas redes sociais e meu telefone tocava sem parar, decidi que não ia atender nem responder ninguém. Enviei uma mensagem para a única pessoa que realmente precisava saber alguma coisa sobre o que eu estava pensando naquele momento e me recolhi em silêncio.

Desde quinta-feira o silêncio e a reflexão têm sido meus companheiros fiéis, as lágrimas também. Um sentimento pesado e difícil tomou conta de mim. Senti muito e ainda sinto, mas depois desses dias de silêncio e reflexão interna sinto que já sou capaz de expressar algo e responder às inúmeras mensagens me questionando o que eu tinha a dizer sobre as denúncias que envolvem o agora ex-ministro de Direitos Humanos Silvio Almeida. 

Eu sou uma mulher negra de 36 anos que desde a mais tenra idade participa do movimento social negro e do movimento de mulheres negras. Não, eles não são uma coisa só e nem se confundem. Assim como eu, tantas outras militantes e figuras importantes desse movimento mantiveram silêncio. Um silêncio que significa aquilo que tão sabiamente Vilma Piedade nomeou como dororidade. Até aqui meu silêncio é resultado desta dororidade, dessa cumplicidade de quem sabe exatamente a dor, os questionamentos, as muitas noites sem sono e de angústia no coração que antecedem denunciar um homem negro por assédio. Um sentimento amargo e corroído que as mulheres negras, infelizmente, conhecem muito bem. 

O retorno de algumas de minhas memórias pessoais, nos últimos dias, foi dolorido, mas importante para que eu pudesse organizar meus sentimentos frente ao ocorrido. Por duas vezes, fui violentada publicamente por um homem negro que dividia o mesmo espaço político que eu. Eu nunca falei disso de forma aberta. As razões para isso são inúmeras e atravessaram meu pensamento diversas vezes nesses dias. Eu havia me esquecido disso, mas nesse final de semana, a lembrança recalcada dessa e de outras violências que silenciei despertaram ruidosas sobre mim. 

A primeira vez consistiu em um toco de cigarro aceso jogado na direção do meu rosto, que pegou na bochecha e por pouco não atingiu meu olho. Recordei que, quando este homem negro jogou aquele pedaço de cigarro aceso na direção do meu rosto, eu fiquei por alguns minutos imóvel. Não conseguia acreditar que, em um bar lotado, numa mesa compartilhada com outros amigos, aquele sujeito que havia sido meu companheiro de luta e de vida havia tido a capacidade de tentar me ferir de forma tão específica. 

Lembrei também dos sentimentos confusos e de tentar justificar para mim mesma as razões daquele ato. O que eu tinha feito para receber aquele tratamento? Certamente, em algum momento de descuido, eu permiti que ele achasse natural, em uma desavença qualquer, tentar me atingir com uma brasa. 

Nas reflexões de agora, contudo, consegui recordar apenas da reação indignada de uma das minhas melhores amigas frente a isso. Foi apenas perante a raiva daquela amiga querida que eu entendi a dimensão do problema. Ainda que eu tenha compreendido, não solicitei nenhuma medida de punição. Compreendi que era resultado da insatisfação pelo relacionamento recém-acabado e resolvi deixar para lá. 

Deixei para lá porque achei que era uma coisa pequena, sem importância. Deixei para lá porque, afinal de contas, eu precisava saber as consequências do que significava denunciar um homem negro. Deixei para lá porque, segundo os amigos, eu era imensa e ele era um cara de caráter pequeno. Deixei para lá porque nada de bom ia sair daquilo. 

A minha dor não era e nem podia ser maior que o projeto. E o projeto ficaria prejudicado se eu tomasse as providências que eu deveria tomar. Ia passar. Afinal, eu tinha sido violentada por ele em outras ocasiões, essas privadas, e passou, perdoei. Agora que não tínhamos mais um vínculo afetivo, ia passar muito mais fácil. Não precisava de um escândalo público. 

Deixei para lá porque, afinal de contas, eu precisava saber as consequências do que significava denunciar um homem negro.

Eu estava em ascensão, vivendo um momento de reconhecimento na minha organização política e no meu ativismo. Ele, por outro lado, estava perdendo. Perdendo a mim, perdendo os amigos, perdendo suas relações políticas. E eu estava ganhando. 

Para que macular esse momento de ganhos com uma denúncia por causa de um cigarro aceso atirado em direção ao meu rosto? Coisa pequena, poucas pessoas tinham visto. Minha moral, minha valentia, minha marra de grandona não precisavam de um “fiasco” por causa de uma coisa pequena daquela. Por causa de um homem pequeno daquele. A gente ia se afastar cada vez mais, em algum tempo ele ia esquecer da minha existência e parar de me perseguir, e eu ia me esquecer de me sentir perseguida. 

Os meses passaram, eu fui ficando cada vez mais feliz, mais importante, mais reconhecida. Mais solta e mais leve. Fazia mais amigos, conversava mais, sorria mais. Fazia tudo mais. Sinceramente, já nem me recordava daquele episódio lamentável, quando, numa confraternização da nossa organização, eu fui mais uma vez humilhada e agredida moralmente por aquele mesmo homem que tentou me ferir com fogo. 

Eu havia resolvido passar a noite com um outro rapaz, e isso despertou uma fúria violenta, que resultou em meu nome sendo gritado aos berros, associados a toda sorte de insultos. Vagabunda, vadia, puta e todas as outas palavras de baixo calão eram gritadas por aquele homem negro, para que todo mundo ouvisse.

Eu me senti pequena. Envergonhada, constrangida. Cada insulto tinha a mesma força de um tapa no rosto. A madrugada inteira ouvi os xingamentos quieta e recolhida, chorei, fui consolada pelo rapaz com quem eu estava ficando, e dormi. 

Na manhã seguinte, procurei a pessoa que era responsável pela direção política dos trabalhos da nossa organização, um homem branco, que não apenas era meu dirigente político como à época era meu melhor amigo. Eu não lembro exatamente o tom da nossa conversa sobre os acontecidos. Lembro apenas que combinamos que íamos resolver isso no momento oportuno, e que eu tinha que decidir o que fazer a respeito. A confraternização acabou sem maiores problemas e, quando retornamos a nossa vida política normal, eu precisei abrir um procedimento interno disciplinar em relação à violência que havia sofrido. Outras pessoas viram, outras pessoas sabiam, outras pessoas tinham ciência do assédio moral que eu vinha sofrendo, mas coube a mim decidir o que fazer e como. 

Fui aconselhada de muitas formas a não fazer nada. Mas eu estava decidida a não permitir que minha moral fosse violada. Toda vez era lembrada de que qualquer decisão que eu tomasse era de minha responsabilidade. Que qualquer escolha que fizesse era de minha responsabilidade, que qualquer consequência mediante a vida política e pessoal do meu agressor depois de eu haver formalizado a denúncia também teria consequências para mim. Resolvi que eu precisava, sim, denunciar. Denunciei. 

Outras pessoas viram, outras pessoas sabiam, outras pessoas tinham ciência do assédio moral que eu vinha sofrendo, mas coube a mim decidir o que fazer e como. 

Os detalhes da denúncia e dos procedimentos pouco importam nesse relato. Importa saber que coube a mim decidir o que eu queria que fosse feito com o meu agressor. A organização não tinha um protocolo para situações desse tipo. Fui violentada e eu mesma precisei tomar a frente para organizar a maneira pela qual o meu agressor deveria ser disciplinado.

Tantos  anos depois, percebo que as organizações, instituições, o governo, ainda não têm um protocolo mínimo para agir em denúncias de assédio, especialmente, ainda são incipientes os mecanismos disciplinares em casos como o meu e tantos outros. Ainda cabe a vítima decidir o que fazer depois de violentada, ainda cabe a vítima tentar resolver um problema que não foi ela que criou e que, a partir do momento em que ela é responsabilizada pelos desdobramentos da situação, resta a sensação de que de alguma maneira a responsabilidade é um pouco dela, sim. 

Nós, mulheres negras, convivemos por tempo demais com o fardo da responsabilidade das políticas de respeitabilidade da população negra. O nosso silêncio é exigido sutilmente, porque sabemos que denunciar qualquer tipo de violência, seja física ou moral, pode significar para cada uma de nós, individualmente, e para a credibilidade do projeto político de emancipação da população negra. 

As imagens de controle impostas sobre a sexualidade de homens e mulheres negras cumprem o papel de garantir nosso silêncio. Não queremos ter nossos corpos e comportamentos associados à imagem da mulher negra lasciva, tampouco queremos que os homens negros sejam associados à imagem de besta sexual.

Mulheres negras são absolutamente conscientes dos estereótipos que lhes atingem e que atingem os homens negros enquanto coletividade. Elas também sabem que, quando se trata da população negra, os erros individuais nunca são lidos pela sociedade como singulares, mas sim, como coletivos. 

Essa consciência é perniciosa para nossa saúde mental, nos levando a ansiedade, depressão e outras doenças e comportamentos que colocam em risco as nossas carreiras, vidas e sonhos. As formas específicas com que os sistemas de dominação de gênero e raça afetam a população negra não são por nós esquecidas em nenhum momento. 

Na vida pública, as imagens de controle nos atravessam constantemente. Somos nós que precisamos agir mediante a prevalência e persistência de representações de mulheres negras que nos caracterizam como jezebeis hipersexualizadas, respondonas descontroladas e verbalmente agressivas, ou ainda, como aquelas que são fortes, resilientes, emocionalmente resistentes e portanto menos passíveis de acolhimento e proteção. 

As imagens de controle que recaem sobre a comunidade negra seguem disseminando mensagens equivocadas e perpetuam um ciclo de estigmatização e marginalização. Esses estereótipos não apenas distorcem a realidade vivida por indivíduos negros, mas também reforçam estruturas de poder que os mantêm em posições subalternas. A representação negativa e a desumanização da comunidade negra nos meios de comunicação e na cultura popular criam barreiras para o reconhecimento de suas contribuições e experiências. 

É fundamental que, em resposta a essas imagens opressivas, busquemos narrativas alternativas que celebrem a diversidade, a resiliência e a complexidade da vida negra, promovendo uma visão mais justa e equitativa da sociedade. Somente através da desconstrução desses mitos e da promoção de representações positivas poderemos avançar em direção à verdadeira igualdade e inclusão. 

Contudo, apenas nós nos responsabilizamos em frear a repercussão dessas imagens de controle sexualizadas. Apenas nós pensamos muitas e muitas vezes antes de denunciar uma violência cometida por um homem negro, porque sabemos que, sobre ele, pode recair um sem fim de estereótipos desumanizadores. 

O compromisso coletivo com a nossa moral é um pacto de via única. Quando somos nós as expostas, poucas vezes assistimos a solidariedade de homens negros. O que nos resta é sempre o descrédito e a desconfiança. “Alguma coisa ela fez”, “ele não ia agir assim do nada”, “você não acha que provocou esse comportamento?” 

Somos fortemente incitadas a manter uma solidariedade racial que protege homens negros, porque, afinal de contas, somos as únicas capazes de fazer isso. A proteção dos homens negros é nossa responsabilidade desde que nascemos. Somos responsáveis por esses homens e responsabilizadas pelas suas más ações. Já pelas boas, jamais somos creditadas. 

Quando uma mulher negra denuncia um abuso sexual vindo de um homem negro sua palavra será questionada e descredibilizada. A nuance de desconfiança virá acompanhada da atribuição de traição. Trazer a público uma violência cometida por um homem negro contra uma mulher negra é considerado uma traição aos laços de solidariedade racial. É coisa que devemos resolver no silêncio, entre nós, sem que os brancos possam se meter. 

Somos fortemente incitadas a manter uma solidariedade racial que protege homens negros, porque, afinal de contas, somos as únicas capazes de fazer isso. A proteção dos homens negros é nossa responsabilidade desde que nascemos.

Somos taxadas das mais diversas coisas e revitimizadas, mais uma vez violentadas, pois quando questionam nossa denúncia questionam também nosso caráter, ou seja, uma nova violência moral se apresenta, às vezes ainda mais dolorosa do que a primeira. 

Somos aconselhadas sempre a colocar nossas necessidades em segundo plano. A repercussão negativa de um escândalo sexual envolvendo pessoas negras é responsabilidade das mulheres negras. Precisava de um escândalo público? Precisava expor as nossas vulnerabilidades coletivas já tão expostas? Precisava destruir a imagem desse homem tão respeitável? 

O que ninguém pergunta ou se questiona é o tamanho do rasgo no peito que a violência vinda de um homem negro causa em uma mulher negra. Somos facilmente capazes de nos indignar coletivamente por todas as consequências históricas da violência sexual de homens brancos contra mulheres negras. Mas falar sobre o contínuo de violências, assédios, desmoralização que homens negros mobilizam sobre as próprias mulheres negras e, consequentemente, sobre sua própria comunidade, ainda é um grande tabu. 

Nós ficamos em um limiar muito complexo, em uma encruzilhada perversa onde temos que decidir a quem somos leais. Quase sempre decidimos desistir de ser leais a nós mesmas em favor da lealdade à coletividade. Mas quanto nos custa essa lealdade? Quanto ela está sendo benéfica à comunidade negra de conjunto? 

Em O pensamento feminista negro, obra de Patricia Hill Collins que é objeto de meus estudos nos últimos anos, há uma extensa análise sobre a política sexual de mulheres negras. Uma das principais reflexões recai sobre o silêncio de mulheres negras e seu eventual benefício. Collins reflete como, no século passado, o silêncio de mulheres negras sobre questões polêmicas poderia significar a manutenção de espaços seguros para nossa autodefinição. Além disso, destaca como a exposição pública de polêmicas internas à comunidade negra muitas vezes significava uma maior vulnerabilização de homens e mulheres negras conjuntamente. Um silêncio que tem a ver com os estereótipos sexuais imputados a mulheres negras, eternamente tratadas como vagabundas imorais e promíscuas. 

Nós ficamos em um limiar muito complexo, em uma encruzilhada perversa onde temos que decidir a quem somos leais. Quase sempre decidimos desistir de ser leais a nós mesmas em favor da lealdade à coletividade. Mas quanto nos custa essa lealdade?

Às vezes, quando nossa sexualidade é publicamente exposta, considerando os desdobramentos das imagens de controle sobre nossos corpos e comportamentos, o silêncio é uma arma poderosa, que garante a salvaguarda da nossa privacidade. Enquanto gargalhamos, balançamos nossos cabelos e dançamos, guardamos internamente a dor do receio da exposição de nossa moral, a qual compartilhamos secretamente entre outras mulheres negras que são capazes de compreender o ácido gosto da dor que sentimos. 

Por que não denunciamos à época? Por que não falamos quando aconteceu? 

Não denunciamos, não falamos, calamos, porque não nos sentimos seguras. Porque o racismo é um sistema de poder mobilizado para a destruição de mulheres negras, porque vimos tantas outras antes de nós serem desacreditadas, porque assistimos outras ainda morrerem por erguerem sua voz contra a misoginia presente nas organizações progressistas dos mais variados matizes, porque, ao mesmo tempo que mulheres brancas são capazes de se solidarizar com a nossa dor quando ela é oriunda de uma violência sexual, elas são incapazes de compreender a dor que sentimos quando essa violência se dá em termos raciais. 

Falamos entre nós, mulheres negras, porque os homens negros são capazes de condenar ferozmente a violência racial, mas naturalizam e normalizam as agressões de gênero, e muitas vezes são os autores mais vorazes da nossa descredibilização pública. 

Nesse momento, cabe lembrar Anita Hill, como relembra Patricia Hill Collins em seus escritos. Estamos vivendo, no contexto brasileiro, um momento de ruptura de silêncios semelhantes. Em algum momento sairemos desse silêncio sem que sejamos responsabilizadas pelas violências que sofremos. Espero que o romper de silêncios não seja utilizado contra nós, que possamos finalmente estar seguras e que, por fim, não sejamos de maneira nenhuma lidas como traidoras da raça por não concordar com que nossos corpos e nossa moral sejam violados tão constantemente. 


Winnie Bueno é militante do movimento de mulheres negras, consultora de diversidade e inclusão, pesquisadora e escritora. É autora de Por que você não acredita em mim? (Harper Collins), entre outras obras.

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