Ofensiva feminista

Criminalizado no Brasil, o aborto é um assunto interdito e tratado como tabu, apesar de amplamente praticado de forma insegura. A grande maioria dos projetos em tramitação no Congresso Nacional relacionados ao tema são contrários à autonomia das mulheres e aos seus direitos sexuais e reprodutivos. Segundo levantamento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), existem mais de 30 projetos no Congresso de teor restritivo em relação ao aborto. Esse contexto tem diminuído os espaços para um debate crítico, plural e reflexivo sobre a ilegalidade da prática e seus trágicos efeitos sobre a vida de milhares de mulheres. No âmbito jurídico e normativo, o horizonte não se apresenta dos mais promissores pois, no Congresso e no Executivo, as medidas e posições estreitam, cada vez mais, as possibilidades de discussão em torno de sua descriminalização. Como contraponto, aIniciativa Duas Gerações de Luta pelo Aborto no Brasil tem como objetivo recolocar em novos rumos o debate para a sociedade, retomando a questão do aborto pela sua dimensão de direitos humanos e de saúde.

Do Clam 

A Iniciativa Duas Gerações de Luta pelo Aborto no Brasil é pilotada por feministas e organizações que trabalham com a agenda dos direitos das mulheres e começou a ganhar forma a partir das mortes de duas mulheres no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado. Elisângela Barbosa e Jandira dos Santos morreram depois de se submeterem à interrupção da gravidez em condições inseguras. Suas mortes ganharam as páginas da imprensa brasileira, o que, entretanto, não foi capaz de mobilizar autoridades e políticos naquele momento, no qual se desenrolava o processo eleitoral para a Presidência da República e para o Congresso.

No contexto de fortalecimento de discursos radicais contrários à legalização da prática, a Iniciativa Duas Gerações de Luta pelo Aborto no Brasil esteve na semana passada em Brasília para reunir-se com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), com a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e com parlamentares. Os encontros serviram como sinal positivo. “Foi muito importante o fato de termos sido recebidas por autoridades, entre elas o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski. Isso significa que, apesar de tantas dificuldades, existem aberturas, canais por onde o diálogo flui. Nossa intenção é alimentar o debate do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, chamando a atenção para a perspectiva da saúde e dos direitos humanos. Não podemos ficar acuados com a atuação de setores conservadores”, observou a advogada e coordenadora da organização Cepia (Cidadania, Educação, Pesquisa, Informação e Ação), Leila Linhares, que integra a Iniciativa.

Quando fala em dificuldades, Leila Linhares resume um contexto preocupante na questão do aborto. Criminalizada pelo Código Penal de 1940, a prática só é permitida em casos de gestação fruto de estupro, quando há risco de morte à mulher ou em caso de feto anencéfalo (conforme decisão do STF de 2012). Durante o processo de reforma do Código Penal, o anteprojeto apresentado em 2012 por uma comissão de juristas previa a descriminalização da prática até a 12ª semana de gestação, desde que um médico ou psicólogo atestasse que a mulher não tivesse condições de arcar com a maternidade. A sugestão foi derrubada, e o projeto de reforma que tramita no Congresso mantém a proibição tal como o Código de 1940.

De fato, a possibilidade de avançar na questão do aborto naquele contexto era remota. Já nas eleições de 2010, a temática da descriminalização da prática foi alçada à condição de munição de ataque eleitoral, impedindo que o debate fosse reflexivo e levasse em conta os efeitos trágicos que a ilegalidade provoca. De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2010, 15% das brasileiras (ou uma em cada sete) entre 18 e 39 anos já realizaram aborto. São mulheres de todas as classes socais e neste aspecto é que os contornos trágicos ganham evidência: as mulheres mais pobres, como Jandira e Elisângela, estão mais vulneráveis às consequências danosas dos métodos precários e inseguros. Por sua vez, as mulheres com melhores condições financeiras conseguem interromper a gestação de forma segura. Por isso, a ilegalidade é responsável por colocar a prática como a quinta causa de morte materna no país, reforçando as desigualdades estruturais e impedindo que o Brasil reduza seus elevados índices de mortalidade materna – atualmente, 69 mortes por cada 100 mil nascidos vivos.

Com as eleições do ano passado, a configuração de deputados no Congresso Nacional projetou um horizonte desanimador. A bancada religiosa cresceu 14% em relação às eleições anteriores. Juntando setores católicos, evangélicos e espíritas, a bancada capitaneia as ações e projetos contrários às discussões sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Dentre os projetos de lei mais conhecidas, está o Estatuto do Nascituro, que objetiva conceder proteção jurídica ao embrião e, portanto, dificultar o direito à interrupção legal da gravidez.

Algumas ações inseridas na Iniciativa Duas Gerações de Luta pelo Aborto no Brasil já estão ganhando corpo, como o apoio ao projeto de lei 882/2015, de autoria do deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), protocolado por ele na Câmara na semana passada. Elaborado com a participação e colaboração de diferentes entidades, coletivos e especialistas na matéria e militantes dos movimentos sociais que lutam por mudanças nas políticas públicas, o projeto, além de regulamentar o que são os direitos sexuais e reprodutivos, regula também a interrupção segura e voluntária da gravidez até as 12 semanas, que deverá ser garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) à mulher que assim o requerer, e também reforça os dispositivos legais que asseguram a interrupção da gravidez nos casos decorrentes de violência sexual, de fetos cuja vida extrauterina não seja possível, e também dos casos onde a gravidez represente risco iminente à vida ou à saúde da gestante. O PL representa uma ação importante e necessária, e que marca território para os embates que certamente virão pela frente. (O Grupo Demode está promovendo campanha em apoio ao projeto. Pedidos de adesão devem ser encaminhados ao email [email protected]).

A legalização do aborto é vista mundialmente como um sinal de avanço, tendo em vista que há uma série de marcos globais, como a Plataforma de Ação do Cairo (1994), que recomendam a garantia à autonomia das mulheres sobre seus corpos como uma forma de assegurar a saúde. Na Europa, a prática já é legalizada há décadas, em países como França (1974) e Inglaterra (1967). Nos EUA, desde 1973. Na América Latina predominam legislações restritivas, países com alguns permissivos legais (como Argentina, Brasil e Colômbia), que legalizaram a prática apenas em seu distrito federal (como na Cidade do México, onde o serviço é ofertado até a 12ª semana) ou que a proíbem sob qualquer circunstância (Chile e outros). As exceções são Cuba (permitido em qualquer circunstância até a 10ª semana de gravidez) e Uruguai, que legalizou a prática no final de 2012.

A experiência uruguaia e as perspectivas para o Brasil foram temas discutidos no Seminário Direito ao aborto legal: contrastes entre o Brasil e o Uruguai, realizado no dia 25 de março, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ). No evento, a senadora uruguaia Constanza Moreira falou sobre o processo de legalização da prática no país vizinho. De acordo com ela, o aborto fora primeiramente despenalizado em 1934, como uma medida sanitária destinada a controlar a natalidade. Em 1938, a legislação sofreu modificações, restringindo a interrupção da gravidez aos casos de estupro, risco de morte e incapacidade econômica da mulher. No entanto, não houve regulamentação dessas previsões. “Em geral, sempre houve uma certa tolerância com a prática, apesar da legislação. Os juízes sempre mostraram-se relutantes em condenar as mulheres”, observou Constanza Moreira.

A visão sanitária constituiu um importante elemento favorável à prática. Além disso, o fator laicidade também se mostrou importante nos debates e na construção de normas sobre o aborto. Em 1918, a população uruguaia votou em plebiscito a separação entre Estado e Igreja. Nesse sentido, o contexto histórico de certa forma apontava para a legislação de 2012, apesar das resistências. Também contribuiu o fato de a educação sexual ser ensinada nas escolas do país. O processo que levou a legalização da prática, conforme lembrou a senadora Constanza Moreira, contou com o apoio de partidos, médicos, juízes e universidades públicas. Diversos argumentos deram sustentação à proposta.

“Em primeiro lugar, a questão sanitária, tendo em vista a mortalidade materna, a gravidez de adolescentes e a inevitabilidade da gravidez não desejada. São fatos que exigem uma resposta. Em segundo lugar, a fundamentação jurídica: nossa Constituição garante o direito dos cidadãos à saúde. Também foi importante ressaltar que o nascituro não é um sujeito jurídico e que, portanto, o direito da mulher à vida deve prevalecer. Em terceiro lugar, temos dois argumentos filosóficos: o Estado uruguaio é laico e não pode adotar moral particular, como a religiosa. Além disso, a tutela sobre o corpo da mulher é uma violência”, elencou a senadora Constanza Moreira.

Aprovada no Congresso uruguaio, a lei foi sancionada pelo então presidente José Mujica. Prevê que a mulher pode interromper a gestação até a 12ª semana, mas estabelece que o médico pode alegar objeção de consciência para não realizar o procedimento. Em 2013, movimentos contrários à prática conseguiram promover uma consulta popular destinada a convocar um referendo sobre a lei. A consulta, no entanto, fracassou, uma vez que apenas 9% dos eleitores participaram – muito abaixo dos 25% mínimos necessários para a convocação.

A lei continua em vigor mais de dois anos após sua sanção. Dentre os efeitos já registrados, estão a queda do número de abortos no país e, consequentemente, a diminuição das mortes provocadas por abortamento inseguro.

Tendo em vista a atual configuração do Congresso Nacional brasileiro, a realidade uruguaia parece um mundo distante. Com tantos obstáculos, parece improvável que um desfecho semelhante seja exequível no curto prazo por aqui, onde o forte componente religioso e moral parece estar sempre presente nas ações do Estado. Assim, a maternidade é sacralizada e encarada socialmente como um acontecimento obrigatório. Aquelas que não seguem esse roteiro, são estigmatizadas. E legalmente punidas, apesar da prática do aborto ser amplamente disseminada, a despeito de sua ilegalidade. Somado a isso, está a dificuldade de debater a questão e refletir criticamente sobre seus diversos aspectos – morais, filosóficos, jurídicos, sanitários etc.

O que não significa que o debate seja impossível. O esforço da Iniciativa Duas Gerações de Luta pelo Aborto no Brasil é importante para desinterditar a discussão, cujos desdobramentos não parecem ser de curto prazo. Pelo contrário. A mobilização do tema diante da sociedade é capital, reforçando os aspectos de saúde e direitos humanos. Conforme afirmou a senadora uruguaia Constanza Moreira, no debate no Rio de Janeiro.“A única batalha que se perde é a que se abandona”.

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