Os 150 anos da Lei do Ventre Livre

FONTEJustificando, por Lúcia Helena Silva Barros de Oliveira
Lúcia Helena Silva Barros de Oliveira é a atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito e professora de Direito Penal da Fundação – Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. (Arquivo Pessoal)

Misérrima! E ensinas ao triste menino 

Que existem virtudes e crimes no mundo 

E ensinas ao filho que seja brioso, 

Que evite dos vícios o abismo profundo (…)

E louca, sacodes nesta alma, inda em trevas, 

O raio da espr’ança… Cruel ironia! 

E ao pássaro mandas voar no infinito, 

Enquanto o prende cadeia sombria!

“A Mãe do Cativo”

(Castro Alves)

Setembro de 2021. Nesse mês que corre, em que estas linhas são escritas, a Lei do Ventre Livre comemora 150 anos de promulgação. Embora não tenha sido a única tentativa de libertar os filhos de mulheres escravas, o texto legal foi assinado pela Princesa Isabel, colocando em liberdade todos que estavam em tal condição nascidos a partir de 28 de setembro de 1871. 

Ao exame do texto dessa lei, constata-se que não houve cuidado especial com as crianças, as quais não contavam com qualquer proteção aos direitos humanos. Isso provavelmente foi fruto da violência que grassava desde os idos de 1540 — época em que chegaram ao Brasil os primeiros africanos escravos. Talvez seja possível encontrar a explicação para tamanho descaso ainda na Idade Média — época em que os estudiosos referem-se à inexistência de qualquer sentimento de zelo em relação à infância, com a criança tida como “um ser em miniatura”. Nesse viés, é possível rememorar a famigerada “roda dos expostos” (ou “roda dos enjeitados”), na qual os recém-nascidos podiam ser abandonados à própria sorte, o que, certamente, contribuiu, de forma significativa, para a lastimável mentalidade da sociedade em lhes negar a proteção e o cuidado necessários. 

Narra o historiador Rafael Domingos da Silva, em seu texto “Negrinhas e negrinhos: visões sobre a criança escrava nas narrativas de viajantes (Brasil, século XIX)”, que, na época da escravidão, as crianças, em geral, eram vistas como animais de estimação. Brincar com os sinhozinhos na infância era um autêntico retrato do grande e abominável abismo entre a casa grande e a senzala. 

Nesse contexto de tantas práticas indesejáveis e tristes, surge, portanto, a Lei do Ventre Livre, que, embora tenha concedido liberdade aos filhos(as) de escravas, possivelmente também tinha o condão de encobrir outros objetivos, como, por exemplo, uma resposta concreta aos abolicionistas que estavam tentando extinguir a escravidão de forma gradativa. Em outras palavras, não bastava dizer, em seu artigo 1º: “os filhos de mulher escrava que nasceram no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre”. Isso porque essas crianças ficavam em poder dos senhores de suas mães até os oito anos de idade, quando, então, havia a opção de entregá-los ao Estado ou mantê-los sob sua guarda até os 21 anos. Na primeira hipótese, inclusive, observa-se que essas crianças passavam a viver uma real situação de abandono e separação de sua família/mãe. 

Nesse lamentável cenário, observa-se que aquelas mães negras e escravizadas não puderam ver realizado o sonho de ter filhos(as) frequentando escolas ou gozando da liberdade que, em tese, lhes era prometida. O “senhor” (o “dono” dessas pessoas) não era obrigado a propiciar estudo a essas crianças. Além disso, repita-se, tais crianças podiam ser entregues ao Estado — o que, inequivocamente, causava um verdadeiro caos, diante da ineficiência estatal em arcar com a educação e com a obrigação de cuidar de tantas pessoas abandonadas à própria sorte. 

Setembro, portanto, é o mês de se comemorarem duas leis consideradas abolicionistas: a Lei do Ventre Livre (ora em foco) e a Lei Sexagenária, também conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe (hoje com 136 anos). Promulgada em 28 de setembro de 1885, essa lei libertava os escravos com idade superior a sessenta anos, mas esses idosos, a título de indenização pela alforria, ainda se viam comprometidos com a prestação de serviços a seus senhores por mais três anos. Assim, observa-se que, em termos práticos, pouco efeito surtiu essa lei, levando-se em conta que a média de vida dos escravos era de quarenta anos. As condições mais do que precárias que cercavam os escravos contribuíam, de forma decisiva, para o encurtamento de sua vida. Notícias que hoje temos sobre a vida na senzala revelam que o lugar em que os escravos viviam era frio e úmido, e os negros dormiam em chão de terra ou sobre palha, saindo desse confinamento apenas para trabalhar ou ser açoitados (!). Faltavam condições básicas de sobrevivência, como alimentação e moradia, e abundavam maus-tratos e castigos. Enfim, as condições de vida eram para lá de deploráveis, o que, a toda prova, contribuía para a reduzidíssima expectativa de sobrevivência. Nesse contexto, as chamadas “leis abolicionistas” não contribuíram para a proteção dos direitos humanos das pessoas negras. 

Em todos os sentidos, em ambas as leis, a ideia era explorar, ao máximo, a mão de obra escrava, além de exercer vigilância contínua sobre essas pessoas já sacrificadas e desprovidas de toda e qualquer humanidade. Assim, a sonhada liberdade somente foi alcançada — pelo menos sob o aspecto legal — em 13 de maio de 1888, com o advento da Lei Áurea. Trezentos anos de escravidão e, enfim, quase setecentas mil pessoas foram colocadas em liberdade, após tantos anos de aniquilamento de sua condição humana, sem qualquer reparação — moral, legal ou financeira. Não se cogitou sequer de calcular o tamanho da dívida com essas pessoas — vítimas de condições vis e humilhantes!!! E, em um só artigo, concedeu-se liberdade, de forma sucinta, às pessoas escravizadas.

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

Nesse viés, indaga-se: hoje, cento e cinquenta anos depois da Lei do Ventre Livre, há algo a comemorar? Em 2021, diante de tanto racismo, existe realmente motivo de celebração? É claro que, sob o prisma dos primeiros passos abolicionistas, há, sim, o que comemorar, pois representaram, sem dúvida, um ponto de partida!!! Por outro lado, ainda há muitas mulheres negras e pobres que, embora não mais vivam sob o regime de escravidão institucionalizada, sonham, como no passado, com a educação de seus filhos ou filhas negras e pobres — sonho acalentado desde a Lei do Ventre Livre. Em pleno 2021, crianças são abandonadas no interior de comunidades carentes e se veem engolidas por miséria e falta de educação, privadas das condições mais elementares, como boa alimentação, educação, saúde e lazer. E conclui-se: tantos anos depois da sonhada liberdade, o negro continua a vivenciar as marcas da escravidão!!! 

Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica aponta que, entre as crianças pobres de até seis anos, a maioria é negra. A pobreza, portanto, tem cor — e essa cor, lamentavelmente, é negra. Ou seja, os tempos sombrios de escravidão deixaram sequelas e ainda fazem parte da história deste país. A Lei do Ventre Livre, repita-se, dispunha que a mulher poderia perder seu filho aos oito anos de idade e, em casos específicos, até mesmo ter de entregá-lo compulsoriamente ao Estado. Pois bem, atualmente as mulheres negras também se separam de seus filhos para, em condições precárias, tentar obter o mínimo para a sobrevivência familiar. Ademais, lembre-se da elevada taxa de encarceramento entre mulheres jovens e negras, as quais acabam por perder a convivência com seus filhos(as). 

Trilhou o Brasil, portanto, um longo e pedregoso caminho de desigualdade racial. Isso se traduz, tanto tempo depois, em pouca oferta de trabalho, maior encarceramento de pessoas negras, elevadíssimos índices de criminalidade e de analfabetismo etc. Não se olvide que, quando os negros foram colocados em liberdade, não tinham conhecimento do que fazer com essa nova e desconhecida condição. Largados à própria sorte, não havia como garantir uma forma digna de sobrevivência!

Esse contexto nos conduz a todos à seguinte reflexão: Teriam essas pessoas realmente conseguido a almejada liberdade? Ser liberto não é o mesmo que alcançar liberdade. Os filhos e filhas de escravas não gozavam de liberdade. Poderiam largar seu “senhor”? Poderiam estudar? Como eram considerados pela sociedade da época? Os sexagenários, por sua vez, também não tinham liberdade, pois os poucos que chegavam a essa idade não podiam ir aonde queriam. Posteriormente, todas as pessoas postas em liberdade estavam apenas oficialmente “libertas”, mas não podiam alçar voo. Não lhes haviam dado asas!!!! E essa ainda é a situação de muitos na atualidade — faltam-lhes asas. 

Por derradeiro, transcreve-se excerto de uma linda canção, clamando-se para que seu refrão não seja apenas um refrão, mas uma grande reflexão, concluindo-se que a voz de todos deve ser a voz da igualdade. Somos todos iguais!!!!! 

Liberdade!, Liberdade!

Abre as asas sobre nós

E que a voz da igualdade

Seja sempre a nossa voz.

                    (Dudu Nobre)

Lúcia Helena Silva Barros de Oliveira é a atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito e professora de Direito Penal da Fundação – Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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