A partir da pesquisadora feminista nigeriana e intelectuais brasileiras, refuta-se o olhar colonial sobre a epistemologias afrodiaspóricas
Por Carla Akotirene, de Carta capital
A epistemologia acontece na cultura. Entretanto, a colonialidade moderna tão criticada por nós, pensadoras negras decoloniais, solapou das civilizações africanas o ponto de vista ancestral, ainda creditou gênero e sexualidade como marcadores estruturantes dos estudos feministas e de mulheres.
Tais ‘bio-lógicas’ de masculino e feminino subsumiram a heterogeneidade de significados políticos inscritos nos corpos das mulheres posicionadas no mundo. A ponto das pensadoras estadunidenses Ângela Davis e bell hooks, no Brasil Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, atravessarem a década de 80 criticando o racismo dentro do projeto intelectual feminista, que ao orquestrar campanhas pelo direito ao aborto desconsiderou a esterilização em massa de mulheres negras, bem como a implicação de raça nos abortos clandestinos inseguros, realizados por mulheres pobres.
Segundo a pensadora, a Iya (maternidade) reflete a categoria mais estruturante e fluida em termos sociais, políticos e espirituais do povo Yorubá.
Através dela expomos o nosso ponto de vista e o porquê das realidades africanas serem interpretadas sem quaisquer empréstimos ocidentais, tendo em vista o marcador gênero, conforme Oyèwúmi, não conseguir explicar como a fêmea se torna mulher e mãe. Ademais, na diáspora africana o conceito de “matripotência” – superestimação da maternidade – é a lente pela qual poderão os feminismos apreciarem e entenderem a epistemologia africana na diáspora.
A construção de poder materno, por exemplo, remete a Osun; iyabás consequentemente são mães, cujas prerrogativas de autoridade não devem ser deslocadas politicamente em virtude de transformações epistêmicas, ocasionadas pelo patriarcado branco colonizador. Porque em África a hierarquia é ajustada socialmente quanto recurso transponível, variando no território os contextos de idade e geração, daí os mais velhos e mais jovens estarem configurados fora do tempo ocidental.
Na família de candomblé, modelo de resistência negra, não-nuclear, refeita por laços de afeto, os vínculos não são bio-lógicos; a mãe, Iyalòrisà, carrega os valores culturais numa construção cultural fêmea, ela não é nata ou inferior por ser mulher inventada. A mulher torna-se mãe ao “casar-se” em cerimônia com a ancestralidade, independentemente da anatomia sexual corporificada. Naquele rito seus filhos não necessariamente têm laços sanguíneos.
Há contextos aonde os mais novos gozam de prestígios, considerando a antiguidade e posto adquiridos nessa matripotência. O inverso acontecerá em decorrência da iniciação hierárquica bancada naquela cultura familiar, devendo maior dedicação em pesquisa revelar como a dominação masculina se configura nesse arranjo pulverizado de poderes, que logicamente faz os homens com cargos religiosos transporem masculinidades aprendidas durante o contato com a cultura patriarcal.
Para as epistemologias africanas e diaspóricas, o macho não é a regra.
As iyabás são mães que conseguem absolutamente todo o respeito da força masculina sem perder a maternidade e a autoridade iyalódè, visto como a participação política acontece no público e também no privado. A panela da cozinha refoga a língua fêmea que deverá usar toda a sua importância para articular os interesses das outras.
Tratar Osun como sereia das águas doces, narcisista, deusa vênus, portanto europeia, faz parte das cosmovisões etnocêntricas que não refletem a centralidade do pensamento cosmosentido com cinco búzios abertos, orikis e espiritualidade do povo yorubá. A maternidade pertinente a Osun tem sido suprimida do caráter iyalódè, agora caricatura colonizada. Longe de Osun a imagem da mãe chorona, parideira, contrária aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A este respeito lembremos de Lélia Gonzalez, filha de Osun, espelho iyalódè que lutou pela necessidade antirracista do “lixo falar” e de orientarmos as nossas intelectualidades domésticas no espaço público, afinal, Narciso é autoadorador da Europa, Osun é adorada em África. Osun vive na oralidade e na escrita dispostas a traduzirem a beleza das mulheres negras, a sabedoria, a inteligência, a habilidade na administração das riquezas e dentro das ciências sociais; uma deidade maior que os equívocos linguísticos e conceituais sobre corpo, maternidade e destino biológico, duma perspectiva propagada pelo olhar branco-etnográfico e masculinista de Pierre Verger.
O conhecimento a partir do lugar comum da representação branca de gênero, inviabiliza a multidimensionalidade de poder político, econômico, civilizatório existente em Osun, aliás, desperdiça a água contornada epistemologicamente para as Américas sob a forma de pancada e estrondos. Quando buscamos a epistemologia africana, percebemos logo que Osun significa fonte.
Em Ijèsá, anualmente, através do Festival de Osogbo, celebração destacada na Nigéria, é celebrada a sua importância para o povo Yorubá, ao contrário do Brasil, onde Osun aparece quase sempre folclorizada como arquétipo da mulher recatada, sensual, reprodutora, do lar, protetora dos olhos e das crianças. Era de imaginar a charge dessa natureza e brancura comportamentais, sofrer rejeição pelos feminismos e, hegemonicamente, ser submetida às demandas sincréticas cristãs da variação de Osun como maria imaculada, vênus, afrodite…
Osun não parece com Santa Luzia, protetora de olhos, sequer a santa teria condições de ser refletida no abébè segurado pelas iyalódès, pelos feminismos e mulheridades diaspóricas. As ilações fantasiosas, criativas, epistemicidas, são permanentes reificações, em certa medida, elaboradas nas obras de Pierre Verger.
O prestígio do autor na academia aliado ao status sacerdotal no candomblé ganharam parâmetros científicos jamais neutros, na medida em que para Verger o
“Arquétipo de Oxum é o das mulheres graciosas e elegantes, com paixão pelas jóias, perfumes e vestimentas caras. Das mulheres que são símbolos do charme e da beleza. Voluptuosas e sensuais, porém mais reservadas que Oya. Elas evitam chocar a opinião pública, à qual dão grande importância”.
Ora, Osun faz parte da resistência dos escravizados trazidos pelas águas, das conexões religiosas e da espiritualidade cumpridoras da missão de fazermo-nos viver belas, autônomas, fortes suficientemente para carregar o ouro não somente por causa do brilho, mas pelo peso do valor de todas nós intelectuais engajadas no feminismo negro, bem longe de estereotipias da dondoca, frágil, superficial.
A este respeito Chimamanda Ngozi lembra que quando se “trata de aparência, nosso paradigma é masculino”. Para o Império Ijèsá, onde Osun é saudada como Oba, portanto rainha, existe uma história das mulheres soberanas; aspecto fundamental da subjetividade de quem é iyalódè na forma de dizer e pensar. Em Osogbo e nas demais cidades, Osun encontra-se cultuada como guerreira diplomática. A soberania iyalódè alimenta com água o mundo nos seus fluxos de conhecimentos. É preciso engolir!
Paò de Literatura de Terreiro, segundo o Doutor Henrique Freitas
ADICHIE, CHIMAMANDA NGOZI. Sejamos todos feministas; Tradução Christina Baum. 2014.
CARNEIRO, Sueli; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto dos orixás. Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. Elisa Nascimento. Grupo editorial summu. 2008
OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender Series. Volume 1, Dakar, CODESRIA, 2004, p. 1-8 Tradução para uso didático por Juliana Araújo Lopes.
——————— Laços familiares/ligações conceituais: notas africanas sobre Epistemologias feministas. Family bonds/Conceptual Binds: African notes on Feminist Epistemologies. Signs, Vol. 25, No. 4, Feminisms at a Millennium (Summer, 2000), pp. 1093-1098. Tradução para uso didático por Aline Matos da Rocha
ROSÁRIO, Cláudia Cerqueira. Oxum e o feminino sagrado: algumas considerações sobre mito, religião e cultura. IV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura.
VERGER Pierre. Orixás. Deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador, Corrupio /São Paulo, 2e ed. 1986.
GONZALEZ. Lélia – Coleção Retratos do Brasil Negro. Escrito por Alex Ratts e Flavia Mateus Rios. Editora: Selo Negro Edições