Pauta identitária é básica

É essencial repudiar ideias e discursos que legitimam a opressão e exclusão social

Acusar a pauta identitária de responsável pelas dificuldades eleitorais de candidaturas progressistas é uma análise reducionista, que esvazia processos históricos complexos, como o direito das mulheres e a luta contra o racismo. Trata-se de uma distração preocupante sob o ponto de vista do potencial efeito destruidor: atacar o mérito da pauta, desvirtuando o debate sobre as estratégias de mobilização da base social.

Há uma série de questões mais profundas a respeito do modo de produção capitalista e da forma como as relações sociais foram moldadas a partir do mercado que não são endereçadas no debate atual. Muitas soluções para problemas sociais estruturantes são pautadas a partir de uma lógica individualista. O que é mais desejável: facilitar o acesso da classe trabalhadora a um plano de saúde pagável ou ampliar o acesso a consultas, exames e outros procedimentos no SUS? Cada vez mais, respostas que reforcem o senso de coletividade parecem uma utopia.

Temos enorme dificuldade de endereçar tais questões. Grande parte do tempo e energia daqueles que estão efetivamente preocupados com as cenas do próximo capítulo da catarse socioambiental — e que têm alguma consciência de classe — vez e outra é tomada para reforçar algo elementar: essa tal “pauta identitária” é apenas uma questão básica de direitos humanos.

Diz respeito ao direito à segurança alimentar, a ter condições mínimas de moradia, usufruir descanso semanal, poder adoecer e ainda assim ter renda suficiente para sobreviver. Está ligada ainda a não haver uma mulher vítima de violência a cada três horas, a não haver discriminação por causa de deficiência e a não ser assassinado por causa de cor, orientação sexual ou identidade de gênero.-

Provavelmente, as várias camadas de privilégios que muitos usufruem não lhes permitem perceber. Além do mais, essa lista não exaustiva de direitos tem uma base material, que se traduz na produção de bens e oferta de serviços. Portanto também não deveria haver conflito, como alguns especulam, entre uma política de desenvolvimento produtivo verdadeiramente inclusiva e sustentável e uma agenda de cidadania com foco na inclusão social.

Um bom exemplo é o Programa de Dignidade Menstrual, que oferece absorventes higiênicos gratuitamente a pessoas que menstruam e em situação de vulnerabilidade social e de baixa renda. Essa iniciativa do governo federal deve ser celebrada por enfrentar com valentia uma questão de saúde pública e de cidadania. E, se articulada com uma política de desenvolvimento produtivo, pode impulsionar a produção doméstica, gerando renda e empregos.

No entanto é preciso ir além. Avançar nas estratégias de mobilização da base social sem silenciar as questões estruturais de nosso atraso civilizatório significa disputar não apenas a oferta da base material para uma vida digna, mas também a construção da percepção popular sobre as diversas experiências nos campos de saúde, educação, moradia, segurança pública, entre outros. Cumpre notar, portanto, que as novas relações de opressão ocorrem num mundo muito diferente do que existia há algumas décadas. Afinal, qual é o valor de uma carteira de trabalho assinada numa economia de plataforma?

No esforço de construir convergências no campo progressista, é fundamental identificar com clareza o que é inegociável. É igualmente essencial repudiar ideias e discursos que legitimam a opressão e a exclusão social. Somente assim será possível viabilizar a construção de uma ética renovada, pautada na ideia de que o cuidado de si se realiza no cuidado dos outros — como bem destacou Sueli Carneiro ao tratar da resistência negra.


*Marília Bassetti Marcato é professora do Instituto de Economia da UFRJ e assessora do presidente do BNDES. A opinião da autora não representa necessariamente a do BNDES

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