Pelo fim da banalidade da violência contra pessoas negras e por #JustiçaParaJoãoAlberto

Na última quinta-feira, 19 de novembro, véspera do Dia Nacional da Consciência Negra, na cidade que foi o ponto de partida das discussões que articularam esta data como uma pauta nacional de resgate da humanidade da população afro-brasileira, Porto Alegre, João Alberto Freitas, o Beto, foi espancado durante cinco minutos, sem qualquer chance de reação, até a morte.

As cenas, repercutidas incessantemente pela imprensa nacional, são o retrato da lógica de morte e descarte das vidas negras em nosso país, e nos choca profundamente que esse brutal assassinato não gere uma crise moral nacional. Como podemos viver em uma sociedade em que o fato de ser uma pessoa negra é um passe livre para a morte violenta?

Bastaram apenas três dias para que o sangue negro que escorreu de forma covarde, racista e desumana fosse limpo e a loja onde o assassinato de Beto aconteceu retomasse as atividades. Os lamentos cínicos nas notas emitidas pela empresa Vector Segurança Patrimonial e o Grupo Carrefour deixam evidente que as vidas de pessoas negras valem menos que os perecíveis enfileirados nas prateleiras de supermercados Brasil afora.

Toda pessoa negra que vive neste país já passou alguma vez por uma situação de vigilância e perseguição dentro de um estabelecimento comercial. O constrangimento constante de ser seguido a cada corredor em um supermercado é percebido desde muito cedo. Aprendemos com nossos pais, avós e amigos que ir ao supermercado é uma atividade perigosa. Você deve caminhar no meio dos corredores, preferencialmente sem bolsa, mochila, sacolas. Deve pegar um cesto ou carrinho mesmo que você vá comprar um único item e colocar suas compras de modo visível. É recomendado não colocar as mãos nos bolsos e não fazer movimentos bruscos, pois o simples fato de você ingressar no interior de um supermercado sendo uma pessoa negra te torna um elemento suspeito.

Do norte ao sul do país, a hostilidade da segurança pública e privada é justificada por uma lógica de suspeição que foi construída a partir de estereótipos que historicamente são utilizados para naturalizar a violência e a truculência contra corpos negros. As ideologias racistas são mobilizadas para dar caráter de inevitabilidade à morte brutal de pessoas negras de todas as idades, gêneros, status sociais e territórios. A profundidade desse pensamento, enraizado na cultura brasileira, se apresenta com truculência ainda maior quando se trata de homens negros e pobres. Um homem negro e pobre em um supermercado é automaticamente lido como uma ameaça social a ser eliminada da forma mais brutal possível.

A sociologia, a criminologia, a filosofia e outras áreas do conhecimento já demonstraram através de inúmeras pesquisas que o racismo mobiliza múltiplas tecnologias, saberes e técnicas para fazer e deixar morrer a população negra. É preciso deixar lúcida a existência de uma lógica que nega a humanidade de pessoas negras, referendada pelas estruturas e infraestruturas sociais.

Conforme nos alerta Sueli Carneiro, a ideia de humanidade se constituiu sem o negro, e este pensamento permanece de forma tão arraigada a ponto de as repetidas imagens do assassinato de Beto não criarem uma crise moral em nosso país. Ao contrário, as imagens mobilizam nas esferas de poder justificativas que referendam o tratamento desumano que foi destinado a este homem. Aliás, a cruel semelhança entre o movimento corporal feito pelo segurança que asfixiou Beto e o policial que assassinou George Floyd não é mera coincidência, tampouco as reações detestáveis das mais altas autoridades deste e daquele país.

As imagens mobilizam a afirmação de que certamente Beto recebeu este tratamento porque algo fez, porque algo devia, porque estava em um lugar que não lhe pertencia, porque é de merecimento de toda a população negra brasileira ser deixada ao jugo de justiceiros ensandecidos que batem até matar enquanto o Estado assiste.

Nenhuma relativização pode ser aceita ante o assassinato brutal. É o momento de a sociedade brasileira, em especial na capital gaúcha —considerada, de acordo com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal do IBGE, a metrópole mais segregada racialmente em nosso país—, exigir respostas contundentes contra a violência racial.

A Lei Orgânica de Porto Alegre possui, em seu artigo 150, uma penalidade administrativa que prevê multa e a cassação do alvará de empresas que praticam atos de discriminação racial. Em nossa opinião, não há outro caminho para o Carrefour, vide a recorrência de práticas racistas nos estabelecimento da multinacional francesa.

Não basta a responsabilização dos assassinos: a chaga aberta com o assassinato de Beto amplia a tensão racial e aflige a maioria negra do nosso país. O problema é sistemático e estrutural, logo a solução deve atacar o sistema e a estrutura. A responsabilização do Carrefour é indissociável da luta por justiça para pessoas negras, mas ela não se encerra nesta empresa.

As condutas de desumanidade que estão inscritas na lógica de vigilância e abjeção que permeiam as estruturas de segurança no cenário brasileiro precisam ser encerradas. Faremos nós por nós contra essa desumanidade e cobraremos das instituições respostas exemplares para que não mais entremos num hipermercado e saiamos de lá sem vida!


Winnie Bueno, 32, é pesquisadora, escritora e militante do movimento negro; Matheus Gomes, 29, é historiador, militante do movimento negro e vereador eleito pelo PSOL em Porto Alegre.

PerifaConnection

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

Fonte: Por Winnie Bueno e Matheus Gomes, da PerifaConnection na Folha de S.Paulo 

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