Perfil de uma presidenta em 3D (descompensada, desequilibrada, descontrolada): IstoÉ sexismo e misoginia!

“Grande imprensa” passa recibo de sua irrefreável queda

Por Rosane Borges, do Boi Tempo 

istoemachismo

É de trivial evidência que a antes chamada “grande imprensa” perdeu, faz tempo, o status de esfera mediadora central, papel desempenhado sem grandes sobressaltos ao longo do século XX. Como já referi em outros artigos, somos testemunhas de que o sistema midiático passou por substantiva mudança de paradigma: da lógica da radiodifusão e de distribuição, que predominou durante todo o século passado, migramos para uma fase em que o controle sobre a produção e a distribuição já não dependem dos grandes conglomerados, permitindo o engajamento efetivo das audiências. Os paradigmas da conexão e da circulação, forjados pelo novo estágio do capitalismo, ganharam aderência irreversível. O velho modelo um-para-todos (poucos veículos distribuindo informação para uma gama abrangente de pessoas) subverteu-se e diversos arranjos tornaram-se possíveis: um-para-um, todos-para-um, com informações brotando de múltiplos focos.

Trata-se, sem dúvida, de uma rotação de perspectiva que vem tirando o sono de muitos que acreditavam que a fase de ouro da imprensa monopolista não experimentaria o ocaso. São abundantes os sinais e marcas de modificações radicais no âmbito da notícia, decorrentes das infindáveis inovações propiciadas pelas emergentes modalidades de comunicação e expressão. Para Luis Cebrián, fundador e primeiro diretor do El País, a internet “é um fenômeno de desintermediação. E que futuro aguarda os meios de comunicação, assim como os partidos políticos e os sindicatos, num mundo desintermediado? Não existe crise do jornalismo. Existe, sim, uma grave crise no modo de fazer jornalismo”.

Bingo! As declarações do fundador do jornal espanhol, um dos mais importantes do mundo, nos fornecem parte das explicações que justificam os corriqueiros destemperos (agora atribuídos à presidenta Dilma Rousseff) da imprensa brasileira, a exemplo da matéria, publicada pela revistaIstoÉ no final da semana passada, um libelo inequivocamente misógino e sexista. Destemperos que tornam visível o desespero frente à perda de monopólio na produção e distribuição da informação, numa disputa onde tudo vale, ou, ao menos, parece valer.

Modos tortuosos de produção jornalística

Na tentativa malfadada de carimbar a opinião preconceituosa com o selo de matéria jornalística orientada por exaustivo trabalho de apuração, apoiada em fontes legítimas, os repórteres nos põem em um redemoinho atordoante de certezas do instável presente, sob a batuta de uma mulher desequilibrada, descontrolada e descompensada (sic) que sequer sabe controlar as próprias emoções (imaginem governar um país!) e que augura um futuro sombrio para todos(as) nós, caso permaneça no caso. Pincemos alguns trechos da matéria, esta sim, tresloucada:

“Numa conversa com um assessor, na semana passada, a presidente investiu pesado contra o juiz Sérgio Moro, da Lava Jato. “Quem esse menino pensa que é? Um dia ele ainda vai pagar pelo quem vem fazendo”, disse.

Há duas semanas, ao receber a informação da chamada “delação definitiva” em negociação por executivos da Odebrecht, Dilma teria, segundo o testemunho de um integrante do primeiro escalão do governo, avariado um móvel de seu gabinete, depois de emitir uma série de xingamentos.

Bastidores do Planalto nos últimos dias mostram que a iminência do afastamento fez com que Dilma perdesse o equilíbrio e as condições emocionais para conduzir o país.”

Profissionais da imprensa, aprendemos, desde a mais tenra idade na profissão, que o discurso jornalístico é um relato que se constrói com base no relato alheio. É uma fala intermediária que necessita de fontes – tal como precisamos do ar – para ganhar legitimidade. Concedendo, provisoriamente, uma cota de plausibilidade à matéria, podemos, de pronto, considerar que a descrição da “(des)compostura presidencial”, em grande parte encenada em espaços privados, longe dos holofotes da imprensa, requer, com tanto mais razão, o amparo em fontes seguras.

Eis que a IstoÉ, do alto de seu compromisso com o(a) leitor(a), nos brinda com fontes confiáveis, inquestionáveis e palpáveis. São elas, assim tipificadas genérica e evasivamente: “assessores palacianos”, “um assessor”, “o testemunho de um integrante do primeiro escalão do governo”, “um de seus assessores,” “um presidente de uma instituição estatal,” “outro interlocutor frequente,” “um importante assessor palaciano,” “os bastidores do planalto”… Pode-se objetar que em situações prismadas pelo poder de mando, é aconselhável que algumas fontes sejam mantidas em sigilo sob pena de sofreram duras retaliações. Mas, convenhamos, não existem dados que legitimem o perfil mal tracejado da presidenta. Trata-se de seguir a cartilha do direito, amplamente conhecida: “O ônus da prova cabe a quem acusa”. Em suma: numa leitura atenta, o texto não para em pé, configurando-se em peça manufaturada na usina da fofoca maledicente.

À espiral de declarações infundadas, apoiadas em fontes-fantasmas, segue o discurso competente da ciência, responsável por dar o diagnóstico do problema psíquico que acomete a mandatária do país. De fontes anônimas, o texto passa a se apoiar em um discurso referencial, de autoridade, com nome, sobrenome e função, que serve para ratificar a (des)informação:

“O modelo consagrado pela renomada psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross descreve cinco estágios pelo qual as pessoas atravessam ao lidar com a perda ou a proximidade dela. São eles a negação, a raiva, a negociação, a depressão e a aceitação. Por ora, Dilma oscila entre os dois primeiros estágios.”

Os sucessivos tropeços no/do texto não só flagram a inépcia dos repórteres, mas atestam a miséria do mainstream informativo à brasileira, que fere de morte a gramática de produção jornalística nos seus princípios mais elementares. Decididamente, a moda antiga de fazer jornalismo agoniza e, ao contrário do que proclamam os autores da matéria da IstoÉ, é este modelo que carece de um diagnóstico psiquiátrico (ousaria falar em feridas narcísicas) para, quem sabe, se reinventar antes que seja tarde.
De protótipos a estereótipos: os discursos circulantes

Mas não é isto, embora também seja isto, que está aqui em questão. Estamos especialmente mobilizadas no desfile de preconceitos e estereótipos na “matéria” da IstoÉ. Não é mais novidade que mulheres, negros, gays, trans e outros grupos historicamente discriminados são sistematicamente vistos e avaliados sob a lupa dos preconceitos e estereótipos, emoldurados por um arranjo do mundo que determina a compreensão sobre eles, a forma de verdade que expressam e as articulações sociais que produzem os discursos circulantes.

E o arranjo do mundo no qual a matéria de capa da IstoÉ se apoia para (des)construir o perfil da presidenta Dilma Rousseff vincula-se a referências imemoriais reatualizadas pela mídia e, particularmente, pela imprensa. Ainda na trilha da pesquisadora Mayra Gomes, “a reiteração de temas, num longo período de tempo, promove e amarra pontos como pacotes discursivos, ou ideias fonte que orientam a dinâmica tanto do protótipo quanto do estereótipo. Uma ideia fonte amarra, faz ponto e nó, no conjunto de ideias que circula na rede imaginária”.

Valendo-se de ideias fonte que reduzem a diversidade do que é ser mulher, a matéria escava no tempo alguns exemplos para estabelecer paralelo entre passado e presente, reafirmando, assim, a presunção do desequilíbrio emocional, aplicável ao sexo feminino em todo tempo e lugar:

Não é exclusividade de nosso tempo e nem de nossas cercanias que, na iminência de perder o poder, governantes ajam de maneira ensandecida e passem a negar a realidade. No século 18, o renomado psiquiatra britânico Francis Willis se especializou no acompanhamento de imperadores e mandatários que perderam o controle mental em momentos de crise política e chegou a desenvolver um método terapêutico composto por “remédios evacuantes” para tratar desses casos. Sua fórmula, no entanto, pouco resultado obteve com a paciente Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança, que a história registra como “Maria I, a Louca”. Foi a primeira mulher a sentar-se no trono de Portugal e, por decorrência geopolítica, a primeira rainha do Brasil. O psiquiatra observou que os sintomas de sandice e de negação da realidade manifestados por Maria I se agravaram na medida em que ela era colocada sob forte pressão.”

A coalescência de significados (os sentidos pré-dados devem se aplicar a pessoas, coisas, fatos) serve para tornar imediatamente familiar os caracteres que impusemos a grupos estigmatizados, enquadrando-os na “rubrica já posta”. Vários estudos convergem para a afirmação de que a lógica do preconceito é poderosa porque tende a se perpetuar em virtude de ser performativa e auto-realizadora. Dilma Roussef, Maria Antónia de Bragança, batizada de “Maria I, a Louca” (vejam só) e todas as mulheres em posição de mando estão fadadas a perder o tino, “rasgar o verbo” desmesuradamente, ensina sub-repticiamente “IstoÉ”. Acrescente-se a esse quadro comum de referência (a presidente aparece ilustrada com feição carrancuda, expressando corporalmente desequilíbrio, ressoando uma voz trombeteira…) os termos vadia, vagabunda, “mal-comida” fartamente acionadas para xingar Dilma Rousseff, deixando que ver que tais xingamentos só ganham ressonância porque se trata de uma mulher, a despeito de deslocamentos discursivos operados por força da atuação sobremaneira dos movimentos feministas.

O bom jornalismo, moldado em linguagem comum, não deve irradiar preconceitos, ser câmara de ressonância de estereótipos. Ao se amarrar tão acintosamente à rede de significações que embasam discriminações, IstoÉ pactua com um já-dito que não favorece uma opinião pública qualificada. Pode-se, por fim, retrucar que o jornalismo sempre fez uso discursos redutores e não seria este o traço que tipificaria a crise que o ameaça. Contudo, num momento em que outros traços foram subtraídos do ofício noticioso (mediador por excelência dos acontecimentos, fiador da sociedade da transparência, formador da opinião pública, instaurador do espaço público moderno) resta, ao que tudo indica, uma triste retórica que ganha, lamentavelmente, a adesão de indivíduos que se unem ao coletivo por processos de identificação orientados por preconceitos. Indivíduos para quem a revista se dirige para garantir a sua sobrevida.

Vem de Antonio Gramsci um conceito de crise que, a meu ver, se adéqua ao momento presente. Para o pensador italiano, a crise se instala quando o velho já morreu e o novo ainda não despontou. Nesse intervalo, entre o que persiste em ficar e o que insiste em despontar, manifestações bizarras e ameaçadoras se insinuam, tal como a matéria de capa da revista IstoÉ.

***

Rosane Borges é mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutoranda pela mesma Universidade, professora do curso de especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), autora e organizadora de diversos livros, entre eles, Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (Imprensa Oficial, 2004), Mídia e racismo (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.

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