Podemos falar sobre democracia em um país onde o racismo e a impunidade sempre operaram?

A cor de quem tem morrido sumariamente não é a mesma de quem julga ou de quem contribui para que essas mortes continuem a acontecer

O modus operandi do atual governo federal reacende com toda força o coro, muito justo e necessário, pela defesa da democracia.

O enfraquecimento das instituições e os constantes ataques aos instrumentos e aos pilares do regime democrático são evidências da ameaça contra o sistema político em que os cidadãos têm o direito de eleger e cobrar os governantes.

Os eventos mais recentes, como a tentativa, ainda que derrotada, de emplacar a PL do voto impresso e as quase que diárias ameaças de fechamento do STF e do Congresso, dão o tom de um governo que excede os limites mínimos de conservação do que deveria ser um Estado Democrático de Direito.

Outra prova de retrocesso foi dada, em agosto, com mais um capítulo dos desdobramentos da Chacina de Nova Brasília. Um grupo de policiais civis e militares realizaram, no ano de 1994, uma incursão à favela de Nova Brasília e mataram 13 pessoas.

Há relatos que os agentes torturaram e estupraram três mulheres, entre elas, duas adolescentes. Após 27 anos, o julgamento desse crime teve como sentença a absolvição dos réus por alegação de falta de provas.

Os julgamentos desse e de outros crimes, em que a autoria parte de agentes policiais, ilustram de maneira assertiva a máxima da impunidade. A compreensão do viés estrutural do racismo, tão latente na sociedade brasileira, ajuda a elucidar os pontos que compõem esse quebra-cabeça de peças “marcadas”, ou melhor dizendo, racializadas.

A cor de quem tem morrido sumariamente não é a mesma de quem julga ou de quem contribui para que essas mortes continuem a acontecer. Algum dia, a democracia foi levada a sério em um país que, ao longo dos anos e independentemente do espectro ideológico de governo, se habituou a contar as chacinas de corpos pretos, favelados e periféricos?

Tema de obras escritas pelo mestre Abdias do Nascimento, o genocídio do negro brasileiro atingiu atualmente a sua face mais cruel. Já não são tombados somente os corpos adultos, como os de Cláudia Silva Ferreira, Amarildo e de tantos outros que não chegam ao conhecimento do “grande público”. Desse “mal” também tem padecido os jovens, os adolescentes, as crianças de colo e também as de útero.

Ágatha, João Pedro, Emilly, Rebecca, Marcos Vinícius, o bebê Arthur —morto ao ser atingido por um tiro na barriga de sua mãe— e o neném de Kathlen, que teve sua vida tirada antes de ter o seu gênero revelado. Esses são apenas alguns dos nomes das crianças e dos adolescentes que tiveram o seu direito à vida negado.

Todos se foram em razão de uma guerra inglória que convoca batalhas diárias para produzir novos mortos. O combate às drogas e a máxima do “bandido bom é bandido morto” são algumas das expressões de uma narrativa racializada e geograficamente situada que é constantemente acionada para legitimar essas mortes.

Em 2021, o Estatuto da Criança e do Adolecente (ECA), legislação que, em tese, deveria garantir a proteção integral dos mesmos, completou 31 anos. Dentre os seus mais de 200 artigos, destaco o sétimo que, em linhas gerais, institui que “a criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde (…)” . Mas questiono-me a quais crianças e adolescentes esta proteção se aplica?

A pesquisa “Vidas Adolescentes Interrompidas —um estudo sobre mortes adolescentes no Rio de Janeiro—, realizada pelo Iser e pelo Observatório de Favelas, analisou 25 mortes de adolescentes que aconteceram em 2017.

As vítimas tinham o perfil mais recorrente quando se tratam de mortes violentas nesse país: 88% eram do sexo masculino, 84% negros e 60% tinham entre 16 e 17 anos.

O Atlas da Violência (2020) constatou que a população negra representava 75,7% das vítimas de homicídios e 68% das mulheres assassinadas no Brasil. Esses resultados delineiam o que a cada dia não se deixa de ver nas páginas dos jornais, nas manchetes de TVs e nos posts das redes sociais: ser uma pessoa negra, independentemente da idade, é um risco direto à vida.

Ainda que compreendamos o papel desempenhado pela pandemia, no que se refere a incrementação de um contexto econômico, político e social já fragilizado, concluímos que vivemos em uma sociedade colapsada há mais de 500 anos.

O pedido por saídas coletivas, a crise da representação e o descrédito por discursos que não posicionam a questão racial no centro do debate são sinais do que já vem sendo pautado transnacionalmente.

O que tem se colocado é uma impossibilidade de manutenção dos termos do pacto social democrático vigente, que não se choca com o volume de sangue negro derramado todos os dias e que nos colocou onde estamos.

Forjar novas realidades que nos permitam vivenciar um presente e futuro em que crianças e adolescentes possam ter o direito de crescer, sem que isso esteja condicionado à cor de sua pele ou CEP do seu endereço, é o que nos separa de um status social de colapso permanente.


Sharah Elisa Luciano

Mestranda em educação e pedagoga pela UERJ. Afro-sul-americana em diáspora, por vivência. Pesquisa sobre a produção de imagens e narrativas de violência no território da Baixada Fluminense.

PerifaConnection

PerifaConnection, uma plataforma de disputa de narrativa das periferias, é feito por Raull Santiago, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Jefferson Barbosa e Thuane Nascimento

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