O presidente Michel Temer escolheu a militarização da segurança pública como principal bandeira da reta final de seu governo. Trata-se de uma estratégia que contempla a almejada “sensação de segurança” – balizador importante para ganhar simpatia em ano eleitoral. Criou o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e esvaziou o da Justiça, deslocando quase todas as competências para o novo ministério. No Ministério da Defesa, deixou um militar no comando, o general do Exército Joaquim Silva e Luna, em um movimento simbólico, por ser inédito.
por e no blog de Maria Carolina Trevisan
Durante a posse do ministro Raul Jungmann na tarde dessa terça-feira (27), Temer e Jungmann saudaram a presença dos militares. O ministro chegou a pedir uma “salva de palmas às nossas Forças Armadas”. A plateia obedeceu. O presidente reafirmou que o lema de seu governo é “Ordem e Progresso” e disse que as atitudes estão sendo tomadas com o que ele classificou como “diálogo”.
Na entrevista coletiva concedida pelo interventor federal, Braga Netto, também nesta terça, o general respondeu a perguntas previamente selecionadas (o que demonstra pouca receptividade ao diálogo) e afirmou que “o Rio de Janeiro é laboratório para o Brasil”. Sinaliza, assim, que outros estados da federação podem estar sujeitos à intervenção federal, aproveitando o que chamou de “janela de oportunidade”. Corrobora a afirmação de Temer de que “nós não vamos ficar apenas no Rio de Janeiro.”
Violações de direitos humanos
Do ponto de vista dos direitos humanos, no entanto, a escolha do viés militarizado da segurança pública é preocupante. O Rio acumula incursões de militares desde 1992, com resultados breves e pontuais, que não modificaram problemas estruturais. A experiência acumulada pelo uso do Exército na segurança pública do Rio mostra que há alguns pontos cruciais para entender o que ameaça direitos humanos nessas situações:
1. É a Justiça Militar que deverá julgar os abusos do Exército. Em outubro de 2017, o Congresso Nacional e o presidente da República sancionaram a lei 13.491/17. Pela nova lei, se um militar matar um civil durante uma operação, ele será julgado pela Justiça Militar, e não mais pelo Tribunal do Júri, formado por um colegiado de cidadãos sorteados. “É uma justiça anômala, formada em primeira instância por um colegiado de quatro militares da ativa sem formação jurídica, e apenas um civil concursado com formação jurídica. Em segunda instância, vai para o Superior Tribunal Militar, que é formado por 15 ministros sendo apenas cinco civis com formação jurídica. Os outros 10 são oficiais de alta patente das armas, formados em escolas de guerra”, explica o advogado Guilherme Pimentel, coordenador da ONG DefeZap, que recebe e encaminha denúncias de violações nas comunidades do Rio.
Na prática, a nova lei abre espaço para arbitrariedades. Por exemplo, se uma pessoa é acusada de desacato a um soldado do Exército, ela vai direto para a cadeia. Isso não acontece na justiça comum há muitos anos. “Esse tipo de justiça não é justiça”, afirma Pimentel.
Foi o que ocorreu com a chacina do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. Uma operação conjunta da Polícia Civil com o Exército, em novembro de 2017, resultou na morte de oito pessoas. A organização internacional de defesa dos direitos humanos Humans Right Watch diz que “o Exército bloqueia investigações” ao impedir que o Ministério Público do Rio de Janeiro tenha acesso aos soldados que participaram da operação.
“A obstrução das investigações por parte do general Braga Netto mostra a falta de comprometimento real em garantir justiça às vítimas nesse caso e mostra um flagrante desrespeito às autoridades civis”, disse Maria Laura Canineu, diretora do escritório do Brasil da Human Rights Watch.
Dessa forma, a nova lei dá, aos integrantes das Forças Armadas, uma espécie de “licença para matar”. “Há um risco muito grande de ocorrerem operações letais e dessas operações não passarem pelo crivo de uma investigação isenta e de um julgamento justo”, alerta Pimentel.
2. Mandados coletivos de busca e apreensão poderão ser expedidos, mesmo que violem direitos constitucionais (inviolabilidade dos domicílios) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo XII). É uma figura jurídica que não existe na legislação. No Código de Processo Penal, o artigo 243 define que para ser expedido, o mandado deve ser preciso, com nome do proprietário ou morador e endereço da casa, além de fundada suspeita.
“Em 2016, a execução de mandados coletivos na comunidade da Cidade de Deus foi feita de maneira abusiva, com destruição de pertences, devassa das casas e agressão a pessoas”, lembra Pimentel. O Tribunal de Justiça do Rio acabou por anular o mandado coletivo por ser ilegal e todas as “provas” encontradas foram descartadas.
No Complexo da Maré, moradores chegaram a deixar bilhetes pedindo que, se as forças de segurança invadissem suas casas, tentassem não destruir as portas. Uma situação, no mínimo, absurda para quem quer resolver a questão da violência urbana.
Mas, para o ministro Jungmann, a questão dos mandados coletivos é uma “falsa polêmica“.
3. O ‘fichamento’ de moradores remonta a práticas autoritárias e revela a face preconceituosa do poder público ao considerar como suspeito um determinado grupo populacional. Na sexta-feira (23), moradores da comunidade da Vila Kennedy, na zona oeste do Rio, foram obrigados a apresentar documentos e a se deixar fotografar. O Exército buscava informações sobre antecedentes criminais dos moradores.
O Observatório Jurídico da OAB/RJ, criado para acompanhar as ações da intervenção federal, afirmou que a medida pode ser ilegal se não apresentar os critérios, a regulamentação, os objetivos e a transparência dessa medida. O grupo enviou ofício ao interventor, general Braga Netto, pedindo esclarecimentos.
Braga Netto reforçou que as ações ostensivas de cerco às favelas continuarão acontecendo.
É um jeito de criminalizar todos os moradores. Segundo o Censo de 2010, existem 1,4 milhão de pessoas que vivem em favelas no Rio de Janeiro. A situação piora ainda mais se a pessoa for negra.
“As periferias sempre foram tratadas como territórios do inimigo e assim as pessoas que moram nelas”, alerta a advogada Dina Alves, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP.
Para Dina, são as mulheres que têm seus direitos violados nessas situações. “Elas são as principais vítimas. São tratadas como mães de traficantes, como traficantes, como mães de presos, criminosas em potencial.” É um estigma alimentado pelo racismo persistente e entranhado no Brasil.
Nessa engrenagem, a seletividade penal da Justiça e da área de segurança pública precisa ser considerada. “O corpo dessas mulheres é visto historicamente como um lugar privilegiado de testes, de punições e de morte no sistema de Justiça. O corpo da mulher negra é o centro dessa política e dessa parafernália de segurança pública. A intervenção é no útero das mulheres negras.”
Esse olhar sobre o corpo da mulher que mora na favela não vem de hoje. Há pouco mais de 10 anos, o então governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, declarou que as mães que vivem nas favelas são “fábrica de produzir marginal”. Ele defendia o aborto pra conter a criminalidade.
“Não sou favorável às incursões do Exército nas favelas”, diz a estudante de jornalismo Daiene Mendes, 28 anos, repórter do Favela em Pauta e moradora do Complexo do Alemão. Para Daiene, a intervenção dos militares nas favelas são resultado de uma série de políticas erradas, de criminalização. “É uma tentativa que já está fadada ao fracasso, que não traz nenhum tipo de esperança. É uma estratégia pontual que possivelmente vai começar, acabar e não vai deixar nenhum tipo de caminho, de expectativas e novos posicionamentos.”
4. Armas e crianças: crescer com a violência na porta da sua casa tem consequências profundas. Não há dúvidas de que é preciso agir sobre esse cenário. Mas quando a produção da violência se dá pelas forças que deveriam proteger moradores, há uma inversão de valores. A infância se acostuma a desviar de corpos estendidos no chão e cresce temendo ser morta pela polícia. A vida perde valor. Não existe dignidade.
“Como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola. É muito complicado”, declarou o ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao ser perguntado sobre a possibilidade de crianças terem as mochilas revistadas.
“A violência no Brasil expõe as vísceras de um poder público totalmente despreparado para o enfrentamento de questões que demandam não só um forte aparato policial, mas uma ação planejada no campo das políticas públicas, com o objetivo de assegurar a proteção de todos os cidadãos, principalmente crianças, adolescentes e jovens”, afirma a socióloga Graça Gadelha, consultora sênior do Instituto Aliança na área de direitos humanos. “Os verbos proteger e cuidar não estão sendo conjugados pelas autoridades brasileiras que insistem em desrespeitar todas as normativas relacionadas aos direitos humanos ratificadas pelo Brasil.”
O Ministério dos Direitos Humanos anunciou a instalação de um observatório para acompanhar as medidas de intervenção no Rio. Chama-se ObservaRIO e deverá ser composto por membros da sociedade civil e servidores, todos indicados pelo ministério. Esta coluna pediu ao ministro Gustavo do Vale uma entrevista para esclarecer se o ministério considera as situações descritas nesta reportagem como violações de direitos humanos. Também questionou as ações que poderiam ser tomadas em caso de abusos. O ministro não quis dar entrevista.
Uma parte da sociedade dorme, agora, tranquila. Finge não ver que as principais vítimas de violência no Brasil são os jovens negros: 70% dos mais de 60 mil homicídios.
A população das favelas não é o alvo, é a vítima.
Sobre a autora
Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi – Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.