Quanto custa a dignidade humana de vítimas em casos de racismo?

A experiência tem demonstrado que submeter pessoas negras ao racismo é um negócio mais vantajoso para empresas do que investir em políticas internas de educação sobre questões raciais

FONTEPor Hector L. C. Vieira, do Correio Braziliense
(crédito: Maurenilson Freire)

Quanto custa a dignidade de uma pessoa? E se essa pessoa for uma mulher jovem? E se for uma mulher idosa com 85 anos de vivências? É possível quantificar o valor de submeter essa pessoa a uma situação de desrespeito, desconsideração e humilhação? E se for uma mulher negra e idosa? E se para responder a tais questões tenha que se considerar uma falsa e equivocada acusação de furto, concretizada em público com várias pessoas em volta observando, avaliando e julgando a “suspeita” de forma sumária e estereotipada? E se pudermos dizer que essa situação apenas se concretiza em função da cor da pele dessa senhora?

Uma das maiores virtudes da vivência humana é a alteridade — isto é, a capacidade de se colocar na situação do outro e esforçar-se para compreender qual é o sentido que o outro atribui a determinada situação ou circunstância da vida. É o exercício de colocar-se no lugar de alguém, de ver o que essa pessoa enxerga, de ouvir o que ela ouve, de sentir o que ela sente. Certamente, sem uma certa dose de uma difusa alteridade, a humanidade teria tido uma história deveras mais conturbada do que já se observa atualmente.

Pois bem, imagine que a pessoa submetida à situação descrita seja você, leitor/leitora. Caso você seja branco/branca, imagine que tal situação ocorreu, por exemplo, em função do formato da sua orelha, das dimensões do seu maxilar, da grossura dos seus lábios ou da cor dos seus olhos. Já imaginou ser alvo de desrespeito e humilhação apenas por causa de qualquer característica física que é natural ao seu existir?

Quanto valeria o constrangimento de ter que abrir sua bolsa, contendo os pertences íntimos e de uso cotidiano, em público sob a errônea acusação de furto? Imagine se fosse com você e a desconfiança fosse por causa da cor dos seus olhos? E quanto custa o constrangimento de duas mulheres negras, uma delas com 85 anos, serem falsamente acusadas pela prática de um crime e serem submetidas a uma revista ilegal e sem qualquer legitimidade em público?

Casos “hipotéticos” como esse acima acumulam-se na existência de pessoas negras no Brasil. A essa altura, podemos considerar superados os debates rasos sobre se tratar de mal-entendido ou de equívoco comportamental individual que não constituem protocolo de abordagem de empresas, valores de estabelecimentos comerciais, casos isolados de espaços privados abertos à circulação do grande público ou, mesmo, de atuação estatal.

É preciso compreender e reforçar: não é mal-entendido, não é acidente, não é por acaso, não é caso isolado, não é situação excepcional, nem mero desvio de conduta, nem mero dissabor da vida cotidiana.

O que existe, de fato, é a perpetuação de um racismo institucional que é requentado fortemente no cotidiano das pessoas negras. Isso acontece seja devido à despreocupação com a questão racial e a existência racializadas, seja em função da desconsideração, tradicional e histórica acerca do violento racismo construído nas relações sociais brasileiras.

No que diz respeito à postura do Poder Judiciário ao julgar a responsabilidade civil por atos de racismo, é possível dizer que tem contribuído para a recorrência de situações como essas. Em pesquisa realizada pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP), a análise de decisões proferidas em tribunais de sete estados brasileiros (BA, GO, PA, PR, RJ, SP e SE) revelou que, em segunda instância, aproximadamente 70% das indenizações ficam no limite de até R$ 10 mil. Já na primeira instância, os valores se mantêm, em 51% dos casos, em até R$ 5 mil.

Todos são casos em que a honra, a igualdade, a liberdade, a integridade física e psicológica, a identidade, o projeto de vida e a dignidade humana são violados frontalmente. Quanto custam esses direitos fundamentais? Quanto vale o desrespeito à cidadania negra com base na Constituição Cidadã que, com alguma austeridade, salientou a proteção contra o racismo? Em termos econômicos, vale a pena ser racista no Brasil?

Bem, a experiência tem demonstrado que submeter pessoas negras ao racismo é um negócio mais vantajoso para empresas do que investir em políticas internas de educação sobre questões raciais, em compliance antidiscriminatório, em programas de promoção de pessoas negras a postos de comando, entre outras medidas substantivas viáveis. Nessa lógica, a suposta postura antirracista se torna somente retórica que falseia a realidade e obscurece fatos, resumindo-se a ações ineficazes que não têm qualquer capacidade de inclusão, diversidade, respeito e antidiscriminação.

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