Quatro gerações de mulheres negras histerectomizadas

Encontrei na feira, na semana passada, a filha de uma lavadeira que conheci quando estudava medicina. Bote tempo, pois terminei a faculdade em 1978! Quando Angela Davis veio ao Maranhão, nos reencontramos na 1ª Jornada Cultural Lélia Gonzalez, em São Luís (de 11 a 15.12.1997), realizada pelo projeto “O Olhar da Mulher Negra: a sociedade e a cultura brasileira contemporânea”, da Fundação Cultural Palmares.

Por Fátima Oliveira, do O Tempo 

Em resposta ao “como vai a sua família”, ela, hoje enfermeira, disse-me com ar de revolta incontida: “Todas as mulheres que a senhora conheceu estão vivas, mas sem útero!” Arqueei as sobrancelhas. Ela continuou: “Doutora, li tudo o que a senhora escreveu sobre os miomas. Minha bisavó, minha avó, minha mãe e duas irmãs delas já eram mulheres sem útero. Aprendi muito. Não o suficiente para impedir que eu e uma irmã perdêssemos nossos úteros!”

Sacolas pesadas, trocamos telefones, e ela indagou: “Até quando os úteros das mulheres negras só servirão para o lixo hospitalar?”. E acrescentou: “Será que Flávio Dino não vai ter dó de nós?”. Não tendo as respostas que ela precisava, fiquei calada. Um aperto no peito, um nó na garganta… No carro, chorei. Sempre choro diante dos muros da impotência. E meu choro em momentos assim é como uma pintura para guerra…

Sou estudiosa dos miomas uterinos desde 1993, quando pesquisadora do programa Saúde Reprodutiva da Mulher Negra (Centro de Análise e Planejamento), sob a coordenação da professora Elza Berquó, célebre demógrafa mineira, há anos radicada em São Paulo. Uma de minhas tarefas era a consultoria científica dos estudos desenvolvidos pelo programa, naquele tempo único na América Latina. E até hoje único no Brasil!

O programa preparava pesquisadoras negras em saúde da mulher negra. Uma delas, Vera Cristina de Souza, socióloga e professora universitária, fez mestrado e doutorado sobre os miomas. Foi necessário que uma cientista de renome, como Elza Berquó, decidisse apostar em estudantes negras (política de ação afirmativa) para que um assunto, como os miomas, de interesse absoluto para as mulheres negras fosse estudado em profundidade. O que significa que papas e papisas da ginecologia brasileira nos devem mais essa e insistem em não aprender!

Os miomas uterinos são os tumores mais comuns nas mulheres, de qualquer raça/etnia, e atingem cerca de 20% delas na idade reprodutiva (entre a primeira menstruação e a menopausa). Em geral são “tumores silenciosos” (sem sintomas); benignos; (menos de 1% se maligniza); de crescimento lento (a maioria diminui de tamanho, naturalmente, após a menopausa). Em meu livro “Oficinas Mulher Negra e Saúde” (Mazza Edições, 1998) encontram-se as seguintes informações:

1. A maior incidência dos miomas em determinados grupos raciais/étnicos coloca-os na categoria das doenças raciais/étnicas. A grande ocorrência de miomas em uma mesma família classifica-os como uma doença familiar – indício que aponta possível base genética, provavelmente uma condição poligênica;

2. Nos dados da literatura médica norte-americana, a prevalência de miomas em negras é cinco vezes maior que nas brancas; e é duas vezes superior nas brancas judias do Leste Europeu que nas demais brancas”;

3. Alguns estudos indicam que a obesidade e as pílulas anticoncepcionais, com altas doses de estrógenos, estimulam o aparecimento e o crescimento dos miomas.

Não tenho compromissos com a omissão! O Maranhão até agora não implantou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (2009), assim como quase 100% dos demais Estados! É doloroso, não é?

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