Quatro teses contra a acusação de vitimismo de negros, mulheres e LGBT

Para Aristóteles, o termo falácia significa um raciocínio falso que se apresenta como verdadeiro. Diante da liberdade alcançada pelo advento da internet, a responsabilidade pela interpretação dos fatos e da real dinâmica social parecem ter ficado de lado. Somam-se a isso centenas de pontos de vista argumentativos que, na falsa pretensão de imparcialidade e sem base histórica, colocam a luta por direitos como vitimismo. Muitos desses argumentos, que não por acaso colocam a luta por direito dos negros, mulheres e LGBT como vitimismo, são falaciosos e tendenciosos; ocultam uma face conservadora com verniz liberal só admitido num país em que as mínimas realizações democráticas não foram realizadas.

Por Douglas Rodrigues Barros, no Negro Belchior 

É preciso entender quais são as lutas por direitos para, com isso, demonstrar que muitas destas estão no interior de uma dinâmica liberal – no sentido clássico. Tal fato pode ser dito, por exemplo, da política de ações afirmativas que visa uma reforma condizente com o liberalismo, sobretudo quando busca uma concorrência mais equânime no interior do mercado de trabalho.

O que assusta, então, os saudosos da ditadura ou aqueles que acreditam no capitalismo como redenção da humanidade a despeito do patamar de desigualdade que atualmente chegou aquele do século XIX?

A resposta só pode estar no fato de que as “benesses do capitalismo” não atingiram a imensa maioria da sociedade. Mas, mais que isso: a luta dos negros, mulheres e LGBT traz consigo o desnudamento das contradições que erigiram a nossa sociedade atual junto com seu sistema e, como tal, desmistificam o deus adorado pelos conservadores de plantão. Assim, passo a enumerar alguns dos temas falaciosos utilizados por tais personagens para desqualificar a luta de importantes setores da sociedade.

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1 – O direito é igual para todos

Para quem vive no Brasil, a questão formulada dessa maneira demonstra uma total falta de imparcialidade, mas que falaciosamente soa como imparcial. Acreditar que o direito pressupõe igualdade concreta numa sociedade tão desigual é algo contraditório. Assim, se a filosofia serve, como nos diz Žižek, para formular questões e não verdades, a questão deveria ser formulada da seguinte maneira: se o direito é igual para todos, porque na realidade concreta isso não ocorre?

Há interessantes teses na área do direito que tentarão dar cabo dessa discussão e que seria impossível tratar num artigo como este. Entretanto, sigo aqui a instigante contribuição de Thiago Ferreira Lion, que mostra em sua homérica dissertação de mestrado a articulação do fenômeno jurídico ligado à dinâmica das trocas na sociedade mercadológica. Em algum momento de sua dissertação ele faz a seguinte afirmação:

“Do mesmo jeito que o direito pode ser legal ou não, o próprio sujeito de direito poderia ser legalmente constituído ou não. Assim, o direito apareceria como diretamente decorrente da relação econômica”.

Em que pese as polêmicas que esta hipótese levanta, sem dúvida, ela abre veredas para se pensar o porquê do negro, da mulher e das LGBT’s terem sido historicamente excluídos e alijados como sujeitos de direitos. Foi Simone de Beauvoir que se referiu à mulher como “sujeito não constituinte”.

Retomando uma velha formulação, o direito surge identificando seu sujeito como o dono dos meios de produção, isto é, o indivíduo branco, heterossexual, patriarcal e burguês. Desse modo, a igualdade presumida no interior do aparato jurídico está ligada à posição que o indivíduo detém nos meios de produção.

Isso abre caminho inclusive para se entender porque os salários, para as mesmas funções, ainda hoje, não são equiparados e por que o acesso ao próprio direito não é uma garantia universal – tendo em vista o número de encarcerados sem julgamento que atualmente chega a 60% na imensa maioria composta por negros. Assim, a igualdade garantida pela constituição é simplesmente formal e não efetiva. Por isso, a luta por direitos desses setores é uma luta pela igualdade efetiva e não simplesmente formal, isto é, quer tornar prática a teoria.

2 – Se o direito é igual para todos, negros não podem ser beneficiados

No tópico anterior evidenciamos que a igualdade proposta pelo direito se mostra concretamente como algo formal. E, sendo assim, a luta pela afirmação de direitos para os negros visa, entre outras coisas, corrigir essas distorções legadas pela desigualdade real, concreta e ideológica. Logicamente, se a igualdade formal não encontra respaldo na sociedade, então os negros não estão sendo beneficiados e, sim, estão lutando por um direito efetivo que saia de uma igualdade meramente abstrata e formal. Isto bastaria para invalidar o raciocínio falacioso que quer fazer crer que a luta e conquistas dos negros sejam benefícios sem mérito. No entanto, uma pequena digressão pela história talvez torne ainda mais claro as raízes da falta de direitos sofridas pelos negros e a falácia daqueles que sustentam tal tese:

Embora os negros tenham contribuído diretamente para a acumulação do capital mercantil europeu, não foram reconhecidos, até fins do século XIX no Brasil, sequer como humanos, que dirá como sujeito de direito. Como sabemos, sua história está ligada ao maior tráfico humano de todos os tempos, patrocinado, sobretudo, pela Inglaterra. Foi sobre o sangue negro e indígena que foram construídos navios, fábricas, ferrovias e bancos. Entre o século XVI e XIX milhões de africanos atravessaram os oceanos e, sob o tacão de ferro, construíram casas, moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão e colheram o ouro de aluvião nas minas gerais. O mesmo ouro que financiou o capital industrial inglês devido ao fato de Portugal estar endividado pelos parasitários financistas.

Foi com o surgimento e desenvolvimento da indústria inglesa, possibilitada por uma verdadeira sangria das minas no interior do país e do alumínio de Potosi, que a Grã-Bretanha se tornou antiescravagista. Sua produção industrial tinha se expandido e precisava de novos mercados para escoá-la. Assim, o regime salarial tinha que se sobrepor à escravidão. Tal fato, entretanto, tornou o tráfico ainda mais lucrativo pois a repressão elevou os preços da valiosa “mercadoria”.

Quando navios ingleses acossavam navios negreiros, os contrabandistas simplesmente se livravam da “mercadoria”, lançando centenas de negros para morrerem no vazio do imenso oceano. Uma barbárie sem precedentes na história humana pouco debatida nas escolas e mesmo nas universidades cujo número de vítimas bate a cifra trágica de milhões. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura no Brasil manteve-se, entretanto, a prática da monocultura ligada ao latifúndio, o que resultou numa escravidão ampliada, aprofundando o ocaso da subsistência dos negros que ficaram à mingua. Assim, a “libertação” significou a condenação à morte e à fome de milhares, ou ainda, a manutenção da mesma relação de escravidão agora não mais institucionalizada.

3 – Os negros são racistas também, portanto, é vitimismo acusar o outro de racista

Um velho sábio disse uma vez: “as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante”. Em recente pesquisa se constatou que 52% da população brasileira é negra. Numa sombria coincidência, dos 52 atores da novela Paraisópolis, que visava demonstrar o “modo de vida exótico da periferia”, somente 6 eram negros. O que contrasta radicalmente com a realidade, uma vez que dois terços das casas de favelas são chefiadas por homens e mulheres negros segundo censo PNUD. 

Certamente, os meios de educação da imensa maioria são os meios de comunicação de massa e neles a representação negra é ínfima. Na televisão, a cor representada é a europeia e as veias abertas pela segregação têm sua confirmação nos meios de comunicação. Assim, não deve haver dúvidas de que a classe dominante no Brasil é hegemonicamente branca e sua representação ideal se efetiva em todos os meios de comunicação. Tal fato faz com que o negro não se sinta representado, apresentando padrões de comportamento incutidos pela segregação. Obviamente não estou excluindo a possibilidade de o indivíduo social suplantar o ensino cotidiano da televisão, mas é importante pensar em seus estragos.

Um recente experimento, gravado em vídeo, mostrou como já desde tenra infância o racismo se apresenta no comportamento das crianças, as que mais refletem os preconceitos existentes no entorno social. Não apenas o experimento ilustra séculos de exploração escravagista, como a constatação do racismo na infância demonstra que o aparato do próprio direito foi construído com base nessa exclusão, uma vez que as crianças identificam eticamente como mal o boneco negro. Se alguns negros são racistas, portanto, é porque, entre outros motivos, refletem o racismo no interior da sociedade como um todo cooperando com as ideias dominantes de nossa época.

4 – Mas afinal o que é mesmo vitimismo?

No uso vulgar utilizado pelos paladinos da reação, é uma psicopatologia que coloca no outro a culpa pelos problemas individuais e que dizem respeito à própria pessoa. Ora, exatamente o contrário do que a luta por direitos exige. Ao lutar pelos direitos e pela extinção das ações racistas, misóginas e homofóbicas, seus protagonistas não se colocam como vítimas, mas como atores políticos capazes de questionar o rotineiro e comum.

Crer que alguém que lê Simone de Beauvoir seja vitimista não é só ingenuidade, é tremenda má-fé. Pois, segundo o existencialismo somos os únicos responsáveis pelas escolhas que fazemos, já que não há natureza humana que condicione nossas escolhas individuais. Assim, não há de ser diferente daquele que se constrói, isto é, não há um indivíduo que não seja aquilo que faz de si mesmo. 

Por isso, a luta por direitos é inerente à consciência das nossas próprias escolhas, tendo em vista que se problematiza essas mesmas escolhas, por exemplo; quando uma mulher de cabelo crespo decide alisá-lo, o que tal atitude implica? Isso significa uma tomada de consciência em que pesa as ações condicionadas por um padrão imposto de fora.

Ao se questionar isso, ao contrário do que dizem os filisteus, a mulher deixa de ser vítima para se tornar agente de transformação, deixa de reproduzir uma ação externa para questionar sua aceitação. Ou seja, com a consciência da ação pelo seu questionamento essa mulher passa a transformar aquilo que fizeram dela, exercitando sua liberdade. E isso é de fato o que mais deixa os conservadores incomodados, a saber; quando a vítima decide externar sua situação de opressão resolvendo se libertar dela. 

Sendo assim, é ainda preciso alinhar minha crítica; a luta por direitos, entretanto, oferece um impasse insuperável nos marcos regulatórios do atual sistema econômico. Isto porque tal direito, tal aparato jurídico, foi erguido em nome de um sujeito ideal que é representante máximo da sociedade mercadológica (homem, branco, heterossexual e burguês). 

Temos, portanto, um duplo aspecto dessa luta; por um lado, ela nos faz desvendar o véu de maia que encobre as relações concretas utilizando o uso de um direito universal e abstrato que não se realiza socialmente. Por outro, a simples integração do direito como base de luta amplia o poderio desse mesmo direito como garantia de continua manutenção do sistema. A integração dos desvalidos oferece nichos de mercado que reforçam a manutenção do status quo. A meu ver, a síntese dessa dialética da luta por direitos só pode se dar numa palavra proibida que eu não ouso escrevê-la, mas que as contradições em tempos de crise parecem querer mostrar. Há uma outra questão importante nisso tudo; será que esse mesmo Direito será um dia capaz de contemplar outros que não o sujeito ideal (homem, branco, heterossexual e burguês)? A meu ver, tal resposta só pode ser elucidada noutra quadra histórica.

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