Quem matou Marielle atiçou um formigueiro

Em 18 de março de 2018, milhares de pessoas lotaram a Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro. Os figurinos em tons fortes e cintilantes marcavam o fim da turnê Witness da cantora norte-americana Katy Perry. Ovacionada a cada música, foi com a canção “Unconditionally” (“Incondicionalmente”, em tradução livre) que Katy Perry arrancou lágrimas das pessoas que ocupavam o espaço destinado ao show. A letra da música, carregada de palavras de aceitação, amor e libertação, contudo, não foi principal motivo para a emoção coletiva. Os gritos e lágrimas tiveram sua origem e ápice no refrão, momento em que, ao bradar “Unconditional, unconditionally. I will love you unconditionally” (“Incondicional, incondicionalmente. Eu amarei você incondicionalmente”), o telão central do palco exibiu uma fotografia da ex-vereadora Marielle Franco, assassinada junto com seu motorista, Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018, quatro dias antes da apresentação que lhe rendeu uma música-homenagem.

O findar da música, entretanto, não significou o fim da homenagem e nem dos protestos. Ao anunciar a entrada da filha e da irmã de Marielle, Luyara Santos e Anielle Franco, respectivamente, a plateia gritava em uníssono a palavra ‘justiça’. Após um momento de silêncio, a cantora norte-americana deu a irmã de Marielle a oportunidade de falar. O discurso curto, feito enquanto as lágrimas desciam, encerrou-se com a pergunta que se tornou símbolo dos protestos que cobram respostas sobre as execuções ocorridas na noite do dia 14 de março de 2018:  “Marielle e Anderson?” ao tempo que o público bradou calorosamente “presente”. “Marielle e Anderson? Presente”.

O ato de Katy Perry, todavia, foi somente uma parte – importante, é preciso notar – das movimentações e protestos que, além de cobrar respostas sobre os assassinatos, trataram de expor a luta de Marielle em prol dos direitos humanos, especialmente daqueles que vivem nas periferias e das mulheres. Se a militância e a vida política de Marielle apresentavam coerência, o contexto da sua morte apresenta contradições.

Ao tempo da sua morte, a ex-parlamentar havia sido escolhida como relatora da Comissão Representativa da Câmara de Vereadores do Rio, responsável pelo acompanhamento do processo de intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. O papel relatoral significava uma vereadora, democraticamente eleita, investigando todo o processo de intervenção instituído pela Presidência da República. O desempenho da função relatora era somente uma das atividades de Marielle, visto que ela denunciava as constantes violações empreendidas por policiais de determinados batalhões da cidade do Rio de Janeiro, além de outras facções que colaboravam para o extermínio da juventude negra e periférica. As denúncias lhe renderam reconhecimento pela defesa dos direitos humanos, mas também produziram inimigos.

“Ela incomodava pequenas e grandes máfias”, afirmou o deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ). Este incômodo, ao que parece, não foi contido com o seu assassinato. Na tentativa de preservar sua memória e lembrar a pergunta que se converte em silêncio, isto é, “quem matou Marielle e Anderson?”, militantes, simpatizantes e apoiadores daquilo que Marielle defendia colocaram, no Rio de Janeiro, uma placa em homenagem à vereadora. Localizada na Praça Floriano Peixoto, a placa que conferia à rua, informalmente, o nome de Marielle, declarava: “Vereadora, defensora dos direitos humanos e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018”.

A homenagem, contudo, não durou muito. Recentemente a placa foi arrancada e quebrada ao meio, sendo exposta em fotografias e vídeos na internet. Os responsáveis pelo exibicionismo eram candidatos ao parlamento federal e à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), ambos filiados ao Partido Social Liberal (PSL) e defensores do presidenciável Jair Bolsonaro. Por sinal, o candidato que pleiteava o cargo de deputado estadual, Rodrigo Amorim, foi o mais votado para a Alerj, sendo eleito com mais de 140 mil votos. Segundo eles, retirar e quebrar a placa era necessário porque era preciso “restaurar o patrimônio”, além de preservar a memória de “Marechal Floriano”. Ao fim, gritam: “Marechal Floriano, presente!”.

Os “argumentos” utilizados pelos candidatos também giravam em torno do fato de, no Brasil, mais de 60 mil pessoas serem mortas por ano, sendo Marielle somente mais uma dessas pessoas, além de considerarem o atentado sofrido por Jair Bolsonaro como um verdadeiro “ataque contra a democracia”, afirmando ainda ter havido silêncio em relação ao ataque por parte dos partidos de esquerda. Acontece que, mesmo com todos os demais presidenciáveis repudiando a violência sofrida por Jair, movimento que não aconteceu na morte de Marielle e Anderson, já que Bolsonaro foi o único a não emitir nota acerca da execução, o assassinato de Marielle não se situa meramente na linha dos “mais de 60 mil assassinatos que acontecem por ano no Brasil”.

Além de compor as estatísticas que alavancam o número de mortes de mulheres negras ( aumento de 15,4% nos últimos 10 anos, enquanto o número de mortes de mulheres brancas diminuiu 8%) e contribuem, por sua vez, com os argumentos de um genocídio em curso da juventude negra no Brasil, a morte de Marielle se traduz enquanto um verdadeiro atentado político, que, por sua vez, não se desvencilha do gênero, da sexualidade, da classe, da raça e do território.

Se, ao quebrarem a placa, os sujeitos tinham por objetivo invisibilizar o trabalho desempenhado por Marielle e, como consequência, violar sua memória, o propósito que pretendiam alcançar falhou desde a sua gênese. Após a divulgação do vídeo e das fotografia, o site de humor Sensacionalista iniciou uma vaquinha online para a compra de mais placas, num movimento de resistência, mas também de reafirmação. “Eles arrancam uma, nós fazemos 100”, dizia o slogan da campanha que pretendia arrecadar R$ 2.000,00 para confecção de 100 placas idênticas a que foi quebrada. Somente 20 minutos se passaram para que o site anunciasse que o objetivo havia sido cumprido. O anúncio, entretanto, não foi o bastante para deter as doações que chegaram aos 42 mil reais.

Se, inicialmente, havia sido planejada a confecção de 100 placas, agora, com as doações, mais de 1.000 placas foram feitas e distribuídas em um ato que reuniu milhares de pessoas na Cinelândia, na frente da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. As placas nas mãos daqueles que comparecem ao ato, vistas de perto, anunciavam, uma a uma, a homenagem a uma defensora dos direitos humanos; a junção das placas, por sua vez, num grande mosaico que só podia ser visto do alto anunciava, também, um nome que se tornou símbolo, tornou-se primavera: Marielle.

A tentativa de silenciamento funcionou enquanto um canal amplificador das vozes que continuam a perguntar quem matou Marielle e Anderson. Assim, há poucos dias a Estação Primeira de Mangueira anunciou que em seu samba-enredo haverá uma homenagem a Marielle. É, então, notório que as palavras de ordem bradadas na Cinelândia fazem sentido: “quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro”.

Os quatro tiros que ceifaram a vida de Marielle, disparados de uma submetralhadora com balas compradas pela Polícia Federal, aconteceram no momento em que ela assumia a relatoria da comissão que acompanha a intervenção federal no Rio de Janeiro, denunciava grupos de extermínio e agentes violadores dos direitos humanos. A sua morte foi uma tentativa de silenciamento, contudo, o efeito foi inverso e as denúncias cresceram, ao tempo que diversos movimentos tratam de, constantemente, lembrar sua morte e não a deixar ser uma vida que não é digna de “uma nota escrita”.

Sua execução sumária foi uma tentativa de lhe calar, ao tempo que destruir homenagens destinadas a ela sob a égide da preservação do patrimônio público é uma tentativa, novamente falida, de violar sua memória. A morte de Marielle, que transita entre execução, silenciamento, genocídio da população negra, racismo, sexismo e LGBTfóbia, é também um atentado à democracia. Sua morte significa impor silêncio àqueles que, por ela, gritavam através das máscaras que os silenciam. A morte de Marielle significou a morte de cada um de nós, negros e negras, ao tempo que a violação de sua memória produz movimentação, gera reação, reaviva as mentes para gritar: “Quem matou Marielle e Anderson?”.

Hoje, sete meses após as execuções sumárias, a pergunta simbólica permanece sem resposta. Os movimentos, contudo, vivem e se organizam para cobrar das autoridades respostas para a morte que significou um ataque a direitos e à democracia. Marielle, mulher preta, bissexual, nascida no Complexo da Maré e ativista dos direitos humanos ainda vive. Marielle e Anderson? Presentes!

 

José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes é graduando em Direito pelo Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ-Santa Rita) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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