Em seu mais recente livro, o pesquisador Carlos Fonseca conta a trajetória dos retornados, escravizados libertos e seus descendentes que deixaram o Brasil e retornaram à África de seus ancestrais, voluntariamente ou obrigados, desde meados do século 19 ao 20. Em Togo, Nigéria e Benim, formaram-se comunidades afro-brasileiras cuja influência cultural marcou a vida nesses países e ainda se manifesta na culinária, na arquitetura, nas festas e nos ritos religiosos.
O livro “Os Retornados”, de Carlos Fonseca, foi fruto da serendipidade. O termo é usado para descrever o momento em que se encontra algo valioso por acaso, e a descoberta não passa despercebida.
Hoje sexagenário, o autor tinha cerca de 20 anos e estudava em Paris quando ouviu falar pela primeira vez sobre brasileiros que viviam na África. Ele trabalhava como fotojornalista e fora convidado a acompanhar o rali Paris-Dakar, no qual os motoristas dirigiam da França ao Senegal.
Ele e seus colegas de equipe chegaram até Burkina Faso, da onde seguiriam para a Mauritânia cruzando o Mali. Só não esperavam que o Mali declarasse guerra contra o país onde estavam, em 25 de dezembro de 1985. A reportagem foi pelos ares.
Impossibilitado de sair da região do Golfo da Guiné por causa da guerra, Fonseca acabou perdendo o semestre da faculdade. Decidiu, então, ficar. “Na fronteira do Togo com o Benim me identifiquei como brasileiro, e as pessoas começaram a dizer que havia muitos brasileiros ali.”
Ele não entendia como, já que na época o Brasil nem sequer tinha embaixada lá. “Fiquei com aquilo na cabeça e só comecei a entender quem eram esses brasileiros muito tempo depois”, prossegue. A pergunta se transformaria numa pesquisa de quatro décadas e em mais de um livro, sendo o mais recente “Os Retornados”, publicado agora pela Record.
Os brasileiros que Fonseca encontrou, no caso, eram descendentes de ex-escravizados que deixaram o Brasil Colônia em meados do século 19 em direção ao continente de seus ancestrais.
Os primeiros desses retornados, como eles passaram a ser chamados, eram participantes da Revolta dos Malês, levante de escravizados ocorrido em Salvador em 1835. Eles foram julgados e, em seguida, deportados.
A repressão que se estendeu contra a população negra liberta a partir de então levou famílias inteiras a se mudarem para países como Benim, Nigéria, Togo e Gana.
Juntaram-se a eles negros libertos que optaram por retornar espontaneamente para a África. No livro, Fonseca resgata um anúncio que o casal Tito e Antônia publicou no jornal Diário da Bahia anunciando sua partida rumo à costa africana.
Por trás disso, podia haver tanto o orgulho de retornar à terra dos ancestrais quanto uma declaração pública de liberdade ou, ainda, um recado aos que desejassem enviar cartas ou encomendas —ou todas as alternativas ao mesmo tempo, segundo a historiadora Mônica Lima e Souza, mencionada no livro.
O total de retornados é incerto. Enquanto Souza cita cerca de 3.700 ao longo dos 35 anos posteriores à Revolta dos Malês, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha projeta que o número pode ter chegado a 8.000 no mesmo período.

Ao fim da travessia pelo Atlântico, porém, eles descobriram ser diferentes daqueles que tinham continuado na África. Tampouco se assemelhavam aos brasileiros que haviam deixado para trás. Formaram, então, comunidades afro-brasileiras cujas singularidades passaram a expressar por meio da música, da religiosidade, da arquitetura, da culinária e da linguagem.
Os retornados são chamados de “agudás” no Benim. Em Togo e Gana, são conhecidos como “tabons” por terem incorporado a expressão brasileira “está bom?” ao vocabulário. Lagos, na Nigéria, viu o nascimento de um bairro brasileiro que existe até hoje —o comércio estabelecido pelos afro-brasileiros lá instalados teria ajudado a elevar a cidade a capital, status perdido após a construção de Abuja.
“Apesar da mistura cultural, os retornados ainda fazem questão de se apresentarem como brasileiros”, relata Fonseca. Uma das tradições preservadas pela comunidade é a festa de Nosso Senhor do Bonfim, lá celebrada no terceiro domingo de janeiro —no Brasil, ela começa na quinta-feira anterior ao segundo domingo depois do Dia de Reis.
Eles também têm suas versões dos enormes bonecos com perna de pau típicos do Carnaval de Olinda, lá chamados de Yoyo e Yaya. “A expressão era usada para se referir aos filhos e filhas dos senhores de engenho”, explica Fonseca. “Aí você tem misturados alguns personagens africanos, com máscaras, os personagem do cavalo com o cavaleiro, e a comunidade cantando.”
A arquitetura colonial, levantada com a mão de obra de escravizados no Brasil, também influenciou as construções erguidas em regiões povoadas pelos retornados, incluindo templos religiosos, comércios e residências. “Há várias casas no estilo daqueles sobrados coloniais construídos na Bahia nos séculos 18 e 19. A mesquita de Porto Novo [capital do Benim] parece uma igreja, com duas torres, por causa dessa influência”, conta o autor.
Além de narrar fatos dessa história, a obra de Fonseca também ecoa um grito de adeus: essa memória, já pouco conhecida nos dois lados do oceano, se apaga mais a cada nova geração de retornados que nasce, se casa e esquece do que viveram seus antepassados.
“Encontrei três famílias da Nigéria que ainda tinham um contato com o ramo brasileiro, mas isso é uma exceção. Muitos desses retornados voltaram para a África com a família toda, e os que deixaram parentes no Brasil perderam contato depois”, conta.
Fonseca retornou ao Benim muitas vezes quando já trabalhava como diplomata no Itamaraty, durante as férias. Produzia reportagens para veículos brasileiros e, com o pagamento, arcava com a viagem.
Em uma dessas ocasiões, escreveu uma série de reportagens para o jornal Correio Braziliense em razão dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. Entrevistou cerca de 50 famílias de retornados. “Conheci a memória oral das famílias, o que os pais diziam para os filhos, ou os avós contavam para os netos.”
Ele convidou essas famílias a escreverem cartas aos familiares no Brasil. “Fui montando esse quebra-cabeça aos poucos, até que, em 2004, fiz a primeira exposição com esse material, no Congresso Nacional.” O Itamaraty patrocinou a itinerância da exposição, permitindo que ela circulasse em 12 países africanos.
Mais tarde, em 2010, o material deu origem ao primeiro livro do historiador sobre esse tema, “Cartas d’África”, com entrevistas e fotos de descendentes dos retornados. As viagens continuaram, assim como a pesquisa.
Em janeiro deste ano, Fonseca retornou a algumas regiões para visitar conhecidos e participar da celebração do Bonfim.
“Eu sabia que algumas pessoas que conheci ainda estavam vivas, e queria revê-las. O Karim da Silva, que está no livro, eu voltei a ver. A Francisca Medeiros, que está com 99 anos, também reencontrei. E conheci duas pessoas da família Olímpio que já têm mais de 90 anos. Essa é uma memória que vai se apagando e eu fico com essa vontade de registrá-la antes que eles morram”, diz.
O escritor, que no início de sua pesquisa buscava ter um distanciamento dos personagens, conta que com o passar do tempo construiu laços de afeto.
“Hoje é difícil separar o lado do pesquisador da relação pessoal. Eu fiz muitas amizades lá. Mantenho contato, converso com filhos e netos das pessoas que conheci. E é muito triste quando você descobre que algumas pessoas que conheceu morreram. Eu também estou envelhecendo.”
Os Retornados
Preço R$ 89,90 (443 págs.)
Autoria Carlos Fonseca
Paola Ferreira Rosa – Repórter, escreve sobre raça, gênero e diversidade.