A questão das mulheres negras precisa ser central

Sueli Carneiro já nos ensinou em “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”, que quando falamos de mulheres, é necessário se fazer a pergunta: de quais mulheres estamos falando? Mulheres não pode ser uma categoria única e universal.

Por Djamila Ribeiro, no Blog da Boitempo 

Felipe Larozza/VICE

Se pararmos para olhar a história hegemônica do feminismo, percebemos certo apagamento das vozes das mulheres negras nessa história. Há compêndios e livros sobre a história das mulheres no Brasil nos quais não há capítulos sequer falando sobre feminismo negro ou mulheres negras.

A teoria feminista surge como forma de criticar e refutar uma epistemologia masculinista, estudos e pesquisas formulados tendo como base o homem e relegando a mulher o lugar de outro. A inserção do gênero1 como categoria de análise científica, além de ser importante para a construção de novos pensamentos, foi um ato político. Há uma dimensão política nessas teorias porque são pensadas a entender e enfrentar a opressão histórica das mulheres, além de confrontar os saberes oficiais e as totalizações universalistas. Visa, nas palavras de Sandra Harding, “estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no âmbito das diferentes tradições intelectuais” (HARDING, 1993:7). As teorias feministas já nascem com o compromisso social de emancipação das mulheres, porém possuem enfoques diversos e seguem diferentes perspectivas. Sendo assim, há as teóricas que seguem um viés liberal, outras, marxista, radical, socialista, anarquista, cada qual seguindo seus respectivos quadros analíticos e perspectivas políticas.2 (Diemut Bubeck, 186).

O que observamos é que, a teoria feminista, nasce no sentido de questionar o discurso hegemônico, mas também, de certa forma, acaba incorporando esse discurso ao ser branco-centrada, heterossexual. Sim, estamos falando de mulheres, mas mulheres negras possuem situações diferentes de mulheres brancas. Assim como mulheres lésbicas possuem situações diferentes de mulheres heterossexuais. Então querer atribuir uma identidade comum a categorias diferentes poderia ser considerado um erro de categoria. E se trabalharmos com essa hipótese, a partir desse erro tentou-se mobilizar ações do ponto de vista político para emancipação das mulheres. O que faz com que questionemos: como buscar emancipação para mulheres negras tendo como base a categoria de mulheres brancas? Teorias feministas branco-centradas, mas que se pretendem universais, por mais que possuam uma posição política de emancipação, na ação, não realizam seu objetivo, pois negam as especificidades de outras mulheres, representando assim somente mulheres em situações de algum privilégio social.

“É essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e fazer uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista, classista e a hegemonia sexista, bem como de refutar e criar uma contra hegemonia. Eu estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é único e valioso”.
bell hooks, Feminist theory: from margin to center. p. 15.

E, nesse sentido, a mulher negra ao passar a falar de si poderia contribuir através de sua perspectiva com a teoria feminista por oferecer novas possibilidades de enfrentamento e ações políticas. Por descentrar uma visão que era branco-centrada, mas tida como universal.

Lélia Gonzalez também nos oferece uma perspectiva interessante sobre isso criticando a ciência moderna como padrão exclusivo para a produção do conhecimento. A autora vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco. Segundo a autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação” (Gonzalez, 1988). E, dentro dessa lógica, a teoria feminista também acaba incorporando esse discurso e estruturando o discurso das mulheres brancas como dominante.

Portanto faz-se necessário colocar em cheque essas representações concebidas a partir de um local de privilégio. Seriam necessárias molduras conceituais que nos possibilitem tratar plenamente a questão de que os processos de formação da subjetividade são ao mesmo tempo sociais e subjetivos; que podem nos ajudar a entender os investimentos psíquicos que fazemos ao assumir posições específicas de sujeito que são socialmente produzidas (BRAH, 2006, p. 369).

Nesse sentido, acredito que Audre Lorde e Judith Butler nos tragam perspectivas interessantes. Tanto Lorde como Butler propõem que se repense a ação política do feminismo. Ao dizer que “as ferramentas do mestre não desmantelarão a casa grande” e que “o processo de constituição do sujeito implica necessariamente sua sujeição”, ambas apontam para o fato de que o modelo de representação utilizado pelo feminismo até então, é insuficiente. As autoras evidenciam o fato de que outras vozes precisam ser ouvidas e que a universalização deixa de fora muitas identidades contidas nesse ser mulher. Há uma demanda reprimida, não se pode negar. Mulheres negras, por exemplo, necessitam de mais representatividade e políticas públicas direcionadas. Assim como mulheres trans e mulheres lésbicas. Lorde diz: “Se a teoria de feministas americanas brancas não precisa lidar com as diferenças entre nós e a diferença resultante em nossas opressões, então como você lida com o fato de que mulheres que limpam suas casas e tomam conta de suas crianças enquanto você vai a conferências sobre teoria feminista são, na maior parte, mulheres pobres e mulheres negras? Qual é a teoria por trás do feminismo racista?” Nesta intervenção intitulada “As ferramentas do mestre não vão desmantelar a casa grande” e datada de 1979, a autora já apontava para a necessidade de um olhar interseccional das opressões.

O problema, então, não seria somente a universalização da categoria mulher com vistas à representação dessa categoria, mas também a questão da subordinação universal, ignorando assim as diversas situações econômicas, sociais e políticas de mulheres em diferentes sociedades, assim como a perspectiva etnocêntrica. Essa perspectiva que tanto universaliza o sujeito e a característica do dominado, vem sendo utilizada como ferramenta de ação política. Porém,Simone de Beauvoir nos indica um caminho muito interessante. Ao dizer que o drama da mulher é se colocar e querer como essencial numa situação que a quer e a vê como não-essencial, a autora nos dá a possibilidade de atualizar essa afirmação para a situação das mulheres não contempladas pelo sujeito universal do próprio feminismo. De certa forma, ao eleger o sujeito que irá contemplar, o feminismo institui a essencialidade desse sujeito, fazendo com que os outros sujeitos enfrentem o drama de quererem-se essenciais dentro de um modelo político que os nega e os coloca como não-essenciais.

Se as ferramentas do mestre não desmantelarão a casa grande, quais ferramentas seriam necessárias para contemplar as múltiplas identidades? Como pudemos observar, tanto Lorde como Butler acreditam que é necessário romper com as estruturas para que seja possível uma real emancipação. As duas autoras apontam os limites da política de representação, do modo pelo qual o movimento opera, não somente pela universalização da categoria “mulher” – o que é um erro e também apagamento de múltiplas identidades –, mas também porque o movimento ainda busca a emancipação dentro dos moldes pré-estabelecidos.

REFERÊNCIAS:

BAIRROS,L. “Mulher negra: o reforço da subordinação”. In. LOVELL, P. (org). Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1991.
BAIRROS, Luíza. “Nossos Feminismos Revisitados”. In: Dossiê Mulheres Negras – Matilde Ribeiro (org). Revista Estudos Feministas, Florianópolis/SC, CFH/CCE/UFSC, v.3 n. 3, 1995.
BRAH, Avtar. D”iferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu (26), janeiro-junho de 2006: pg. 329-376.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.
_____ . O segundo sexo – a experiência vivida; tradução de Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”.
COLLINS, P.H. Black Feminist Thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. Nova York: Routledge, 2000.
CRENSHAW, K. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory, and Antiracist Politics. Universityof Chicago Legal Forum, 14, 1989
HARDING, Sandra. (editora) The “Racial” Economy of Science: Toward a Democratic Future (Race, Gender, and Science). Indiana University Press, 1993.
HOOKS, Bell. Feminism is for everybody: Passionate politics. Pluto Express, 2000.
_____. Feminist theory: from margin to center. South End Press, 2000.
LORDE, Audre. Textos escolhidos. Disponível em: <[email protected]> Acesos em 10 de janeiro de 2012.
SCOTT, Joan. “O enigma da igualdade”. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005.
SIMONS, Margareth A. Beauvoir and the second sex: feminism, race, and the origins of the existentialism. Boston (EUA): Rowman& Littlefield Publishers, 1999.


NOTAS

1 Na década de 70 a antropóloga Gayle Rubin desenvolveu a sistematização sexo/gênero que foi um marco para os estudos de gênero. Em seu ensaio O Tráfico de Mulheres: Notas sobre a “Economia Política do Sexo”, publicado originalmente em 1975, sem tradução para o português, Rubin expôs uma conceituação que sistematizou ideias já existentes, embora difusas, sobre os usos de gênero na questão das mulheres (PISCITELLI, 2002).

O sistema sexo/gênero é um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas (RUBIN, 1975).

Ver mais sobre em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” (1989) de Joan Scott.

Djamila Ribeiro é mestranda em Filosofia Política na Unifesp, uma das criadoras do Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero, Raça e Sexualidades e feminista negra.

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