Mesmo com ensino superior, racismo dificulta avanço das mulheres negras no mercado de trabalho

Notícias como a da empregada doméstica que foi proibida de esquentar a marmita no local de trabalho costumam gerar grande repercussão nas redes sociais e exemplificam como as mulheres negras ainda estão majoritariamente distantes de oportunidades de trabalho onde ao menos o direito à alimentação seja garantido.

O acesso à educação é a primeira porta de entrada para a conquista de um emprego digno. Nas últimas duas décadas, a presença de mulheres negras no ensino superior teve um salto de 42%, de acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o que transformou a vida de muitas famílias negras.

Por outro lado, mesmo com o diploma universitário, o acesso ao mercado de trabalho quando se é uma mulher negra permanece marcado por exceções à regra.

O censo Diversidade, Representatividade e Percepção, elaborado pela consultoria Gestão Kairós, identificou que em 2022 ainda havia uma forte disparidade em relação à presença de mulheres negras nas empresas. Dentro do total de 32% de mulheres no quadro funcional, somente 9% eram autodeclaradas negras, número quase 10 vezes menor que o de mulheres brancas, que representam 88%. Ainda, mulheres pretas têm percentuais de representatividade ainda menores, com 2% comparados a 7% de mulheres pardas. Mulheres amarelas e mulheres indígenas são 0,23% e 2%, respectivamente.

Soma-se a esses dados, o fato de as mulheres terem rendimento 21% inferior ao dos homens e, no caso das negras, o bônus de ter que enfrentar o racismo na rotina de trabalho.

‘Macarrão com farinha para os funcionários da cozinha e da limpeza’

Renata Guerra, de 49 anos, cresceu no Morro do Vidigal e se formou em Letras na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Atual diretora geral da Escola Municipal Artur Ramos, na Gávea, a educadora se recorda do tratamento racista que recebeu quando ingressou na profissão há mais de vinte anos, como professora da Escola Municipal Desembargador Oscar Tenório, no mesmo bairro da zona sul carioca.

“Foi uma das piores experiências profissionais da minha vida. Eu achei que tinha sido chamada para trabalhar nessa escola por a  diretora ter um carinho por mim por um dos meus irmãos ter estudado lá, mas ela  viu em mim mais alguém que ela poderia tratar como uma subalterna”, contou, em entrevista ao Geledés.

Na época, só havia Renata e outras duas professoras negras na instituição de ensino. Em um fim de ano, as educadoras ao lado de outros profissionais  propuseram um almoço de confraternização com toda equipe, em que o prato servido seria uma macarronada, porém a direção impôs uma condição para “diminuir custos”.

“Disseram que ficaria caro comprar queijo ralado para todo mundo. Uma pessoa sugeriu que os funcionários da cozinha e da limpeza comessem o macarrão com farinha, que era o queijo ralado do pobre. Eu fui a primeira pessoa da minha família a fazer faculdade e aquilo me chocou demais. Todo mundo ali era como se fosse minha família”, recordou Renata.

Renata Guerra

Mesmo em um cargo de gerência, Renata ainda precisou lidar com o choque das pessoas que a não reconheciam como uma diretora escolar. Hoje ela acredita que a percepção das pessoas é diferente, mas reconhece que a sociedade ainda precisa avançar.

“Às vezes eu ia na coordenação da época e sempre achavam que eu era a mãe de algum aluno e deduziam que eu estava em busca de vaga. Eu percebo que há um movimento de mudança, mas que ainda carece de muita coisa. A mesma fala dita por mim e por um diretor branco ainda é ouvida e interpretada de formas diferentes ou se quer é ouvida”, detalhou.

Avanços para quais mulheres?

É difícil falar em avanços para as mulheres negras diante da desigualdade de raça e gênero em setores como o do mercado de trabalho, conforme apontou a Mestre em políticas públicas Liliane Rocha, fundadora da Gestão Kairós.

“A interseccionalidade de gênero e raça é um limitador de vivências saudáveis no mercado de trabalho. A mulher negra lida com questões cotidianas que não têm de forma alguma a ver com a competência e a potencialidade dela”, observou.

Para Liliane, as mulheres negras, de diferentes gerações, foram expoentes na luta por avanços sociais ao fomentar os debates sobre raça e gênero, mas mudanças estruturais no mercado de trabalho dependem do esforço conjunto das empresas e do estado.

“Ninguém tem a velocidade das empresas e a massividade das políticas públicas. O poder público e as ONGs não atuam na mesma velocidade que o setor privado e as empresas não têm a mesma capilaridade das políticas públicas”, defendeu.

Liliane Rocha CEO E Fundadora da Gestão Kairós/Foto Nicola Labate

Perspectivas para geração de renda e empregos para mulheres negras

Os ministérios do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MSD) e da Igualdade Racial (MIR) iniciaram 2023 com a promessa de fortalecer uma agenda de trabalho para articular políticas inclusivas e de geração de empregos para mulheres negras. 

A pasta da Igualdade Racial informou no fim de fevereiro que pretende contribuir, por exemplo, nas formações de profissionais que atuam no Cadastro Único. As duas pastas atuarão em conjunto para mapear as famílias e as mulheres que mais precisam de auxílio. 

O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social iniciou no mesmo mês diálogos com o setor privado a fim de priorizar a criação de empregos formais como estratégia de combate à fome.

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