Racismo e sexismo à brasileira seguem positivos e operantes

19/10/25
O Globo, por Flávia Oliveira
País tem baixíssima mobilidade social, com uma população convencida de que quem luta vence

Construir argumento frouxo para manter no poder as figuras de sempre é o novo preto. Melhor dizendo: o velho branco. É tática que, no momento, aproxima a escolha do sucessor de Luís Roberto Barroso no Supremo Tribunal Federal (STF) do concurso para lecionar literatura africana na Universidade de São Paulo (USP). Uma mesma cartada, a (suposta) proximidade ou amizade, serve para repelir umas — no caso, mulheres negras — quanto para acolher outro — um homem branco, por óbvio. Ao fim do primeiro quarto do século XXI, racismo e sexismo à brasileira seguem positivos e operantes. E contando.

Ironia em altas doses é forma de confrontar os caminhos que a sociedade brasileira ainda encontra para mostrar que, sob véu de mudança, tudo segue como dantes. O Brasil é um país de baixíssima mobilidade social, com uma população convencida de que quem luta vence. Se não venceu, é porque não lutou o suficiente. Segue o bonde.

Ato contra o racismo, em São Paulo, no Dia da Consciência Negra — Foto: Miguel Schincariol/AFP

Em meados deste ano, o Atlas da Mobilidade Social tornou pública uma série de dados sobre a chance de uma criança oriunda da metade mais pobre da pirâmide social chegar ao décimo mais rico. De cada cem, nem duas (1,81%) alcançam os 10% mais ricos. É muito mais provável descer que subir: 17 em cem vão parar entre os 10% mais pobres. Dois terços, segundo o Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS), permanecem onde estavam ao nascer, quase sempre com acesso entre o mediano e o precário a educação, saúde, saneamento e toda sorte de direitos inscritos no papel, mas sonegados na real.

O ministro Barroso antecipou aposentadoria do STF; desde ontem já não faz mais parte da Corte. Organizações da sociedade civil, de imediato, iniciaram, outra vez, campanhas e apelos para que o presidente da República, numa sociedade heterogênea como a brasileira, tome a diversidade por critério e indique para a vaga uma mulher, preferencialmente uma negra. Pronunciaram-se, entre outros, Mulheres Negras Decidem, Coalizão Negra por Direitos, Instituto de Defesa da População Negra, Themis Justiça e Gênero, Fórum Justiça, Plataforma Justa. O próprio ex-presidente do Supremo manifestou publicamente o desejo de uma sucessora.

Até aqui, o STF teve apenas três ministras. Na função, resta uma, Cármen Lúcia, num colegiado de 11 integrantes. Lula, no terceiro mandato, já indicou dois homens: Cristiano Zanin, para o lugar de Ricardo Lewandowski, e Flávio Dino, sucessor de Rosa Weber. Agora, emerge como favorito o advogado-geral da União, Jorge Messias, seguido por Rodrigo Pacheco, ex-presidente do Senado.

Dos bastidores, brota a informação de que o presidente, traumatizado por indicações anteriores, quer no STF alguém em quem confie. Interesses contrariados não interditam o gênero masculino nem os autodeclarados brancos. Mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+ são vetados não apenas pelas oportunidades que não tiveram, mas também pela falha de seus pares. Errar individualmente sem ratificar estereótipos de um coletivo não deveria ser privilégio de uns poucos. Mas é.

Um velho programa de TV dava a competidores a solitária chance de acertar o nome de uma canção ao ouvir apenas uma nota tocada ao piano. Uma-nota-e-uma-chance é o que o Brasil oferece como possibilidade de inclusão às minorias, mesmo as que somam mais de metade do total de habitantes, caso das mulheres e dos negros. Exigem formação sólida, trabalho duro, persistência. Mérito assegurado, passam a cobrar relação de confiança com quem jamais ofereceu oportunidade.

O círculo próximo do presidente é formado essencialmente por homens brancos, com um par de exceções aqui e acolá. Se um líder não se cerca de mulheres, negros, indígenas, não há intimidade possível. Anos atrás, uma pesquisa mostrou que brasileiros consideravam mais importante conhecer as “pessoas certas” do que ter dinheiro. Rede de relacionamento é sinônimo de oportunidades, óbvio. Como ensinou Cida Bento em seu “O pacto de branquitude”, há um narcisismo que restringe os espaços de poder aos semelhantes, nunca ao outro.

Se redes de confiança não são tecidas, mulheres negras nunca chegarão ao STF, independentemente do notório saber jurídico que detenham. Se proximidade é critério de inclusão, babau. Duro é quando também vira argumento para excluir. Aconteceu com a professora e pesquisadora Erica Bispo. Ela passou em primeiro lugar no concurso para docente de literaturas africanas e língua portuguesa na USP. Mas o processo terminou anulado, a pedido de seis candidatos brancos, sob alegação de favorecimento. Os reprovados usaram imagens de congressos e eventos públicos em que Erica aparece em grupo com duas de cinco integrantes da banca. Ela nega intimidade, mas o Conselho Universitário acolheu o recurso por “indícios de proximidade”.

O racismo brasileiro é faca de dois gumes. Corta de um lado e de outro.

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