Racismo pandêmico: uma história de asfixias, mortes e apatias

Eu não consigo respirar! Essas palavras foram sussurradas quase sem fôlego por Jorge Floyde e João Alberto no instante em que estavam sucumbindo, asfixiados pelo que chamo de operadores do Estado e da iniciativa privada, para assegurarem a estrutura racista/supremacista fundante da classe dominante.

Os ares colonizatórios destroem nossos pulmões. A população negra no mundo vem sendo asfixiada desde o processo de escravidão que mortificou as almas e os corpos do povo negro para dar “vida” a um novo modo de existência que podem ser compreendidos como mutações coloniais.

Os processos de desumanização destroem de dentro pra fora. Primeiro, causa um estranhamento de si, ou seja, a epiderme identitária que contém a formação subjetiva do sujeito é rasgada. Flutuantes e desagregados de si, mulheres e homens negros perdem suas individualidades. Essa é a asfixia da alma! Haverá, pois, justiça para essa morte invisível?

Sabemos que a causa primeira dos processos colonizatórios está ligada a questão econômica, afinal seria esse e não outro motivo a levar o branco europeu a empreender o processo de expansão marítima. E desse germe se constrói um modelo econômico que dita os modos de existência, inclusive daqueles que o construíram. Todos, tudo em uma sociedade capitalista gira em torno da economia. As relações interpessoais e até mesmo as relações intrapessoais estão implicadas com o modo de produção econômico vigente. Ele produz formas de ser.

E todo o aparato organizador das relações sociais de uma sociedade capitalista está, de algum modo, ligado a estrutura econômica. Estado e todas as suas instituições entram como acessório à tal estrutura. E não obstante o sistema judiciário, que de modo nada independente se liga fielmente a estrutura.

Temos assistido extasiados como a Justiça vem sintetizando a estrutura. Basta olharmos quem é a população carcerária, quem está sendo morto, inclusive pelo próprio braço armado do Estado… e de outro lado, quem de fato está sendo contemplado pelos beneplácitos do sistema em voga. Veremos que o Estado por meio de suas instituições funciona como aquele que legitima a violência.

E toda essa desigualdade é naturalizada! Não há, pois, quem questione o normal. O próprio processo de internalização da norma ocorre sem que atentemos para o fato de que se trata de uma convenção social. A apropriação dos construtos socias acontecem de modo a imaginarmos que as relações socias se constroem de forma essencialmente natural. A partir de então, esses instrumentos simbólicos passam a mediar a nossa relação com o mundo dos homens e das coisas. Essas “ferramentas ideológicas” operaram enquanto instrumento de interpretação da realidade.

Eis a razão pela qual não estranhamos quando vemos o genocídio da população negra e periférica. Ou ainda, quando vemos, por exemplo, uma criança negra sendo alvejada em sua própria casa por tiros de fuzis empunhados pelos próprios agentes do Estado.

Frente a situação de violência sofrida pela população negra de modo a atingir seus corpos, seu cotidiano e suas subjetividades, uma segunda violência se apresenta expressa por meio da própria reação gerada pela violência. Ou seja, a indiferença, o descaso e a apatia são modos de acolher a violência em oposição àquele que foi violentado. Isto porque, as vítimas de racismo encontram-se previamente na condição de culpado. Assim, opressão das pessoas negras é interpretada como parte natural da condição de ser negro.

Nessa direção, naturaliza-se a cultura do estupro, mas não se enxerga com bons olhos o movimento de resistência das mulheres. Naturaliza-se a condição de desigualdade, precariedade e escassez vivida pela população negra, mas estranha-se quando um negro ocupa lugares de prestígio social, historicamente ocupado pela elite branca.

Diante de todos esses condicionantes históricos aos quais foram submetidas mulheres e homens negros no Brasil e no mundo, pode-se compreender que o racismo é uma chaga social que tem dizimado milhões de pessoas numa esfera planetária e adoecido tantas outras.

Portanto, o que tenho chamado de racismo pandêmico é o resultado de uma produção sócio-histórica que tem ceifado vidas que sequer são percebidas como vidas. De modo que, nas recentes reinvindicações que trazem as palavras de ordem “vidas negras importam”, os movimentos negros e seus apoiadores chamam a atenção para o fato de que vidas negras são vidas. E segue a luta, pois mesmo que, por vezes, sua existência seja admitida, elas continuam a não importar.

Prof. Dr. Ângelo Oliveira – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) – Área de Currículo e Estudos Aplicados ao Ensino e Aprendizagem – Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas-NEABI
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