Talvez, no fim, seja só sobre isso, sobre espaços que não nos cabem, onde nunca fomos aceitos. Não fomos aceitos na casa grande, e nem conseguimos sobreviver a ela, muito menos aos senhores, as sinhazinhas e aos capitães do mato. Muitos de nós tentaram, iludidos pelo brilho nos olhos de se alimentar com os restos de banquetes, ou de dormir nos pequenos cômodos dentro da casa grande. Corpos que invariavelmente foram vilipendiados, usados, expostos e também marcados pelo açoite e pelo extermínio, mesmo que tardio, se comparado aos corpos habitantes das senzalas.
133 anos depois da falsa libertação dos escravos, nossa existência é ainda deslegitimada e somos mortos objetiva e subjetivamente todos os dias, em todos os confinamentos…eu disse todos os confinamentos!! Prisões, hospitais psiquiátricos, clínicas ditas de reabilitação para usuários de substâncias psicoativas, reality shows. Ao vivo e em cores, para que todos possam ver e tomar como exemplo – corpos negros não devem habitar alguns espaços!
O corpo preto do menino homem do reality show é um exemplo, é só mais um corpo morto, execrado, incompreendido e exposto. Sua exposição, a violência psicológica a qual é submetido, sua saída como mentiroso, manipulador, desequilibrado e sem controle com o alcool é sobre isso. É sobre o fato de que as ofensas, a intolerância religiosa, a síndrome de capitão do mato de alguns dos nossos, a bifobia, a criminalização da periferia, o extermínio e o racismo venceram…estamos de nossas casas assistindo, compactuando e votando. O circo dos horrores é também uma parte de nós.
Corpos pretos não foram feitos para amar, muito menos em rede nacional. Corpos de homens pretos foram feitos para o trabalho pesado, o fetiche, a animalização ou o extermínio autorizado…extermínio, essa é a palavra que cabe ao corpo jovem negro que ousou ocupar o reality show!! Corpo jovem negro que é político…corpo que não cabe e nunca foi aceito, por isso, “cancelado”.
Mas ele resiste, insiste, sobrevive a toda a violência que potencializa seus traumas de homem negro, se nega a permanecer onde o jogo decretou que sua sina era a morte pública. Contrariando todas as estatísticas, incluindo aquelas que colocam os suicídios entre pessoas negras como 45% mais prováveis do que de pessoas brancas, o menino-corpo-negro vive.
Ao viver, ele narra sua própria história, não abre mão dela. Fala de si, mas coletivizando dores e vitórias, brigando pelo aquilombamento dos seus, celebrando em rede nacional a história de resistência do seu povo. Ao viver, ele não sucumbe às estatísticas que tombam um corpo negro a cada 23 minutos, e ao escolher a hora de partir, sobrevive não só ao extermínio, mas ao suicídio e a invisibilidade que eram guardados para seu corpo preto.
Não, essa escrita não é sobre um reality show, é sobre um país que “cancela” um jovem negro a cada 23 minutos…para sempre!! Felizmente ainda temos corpos que resistem, insistem…