Reflexões sobre um racismo à brasileira: a volta dos fantasmas que nunca foram

Começo essa reflexão com uma pergunta aos leitores, em particular aos leitores negrxs. Quantos de vocês já foram rendidos pela polícia? Quantos já sofreram algum tipo de constrangimento com seguranças ou já foram vitimas de baculejos (termo usado para revistas policiais)? De certo muitos já devem ter tido péssimas e traumáticas experiências né? E essas experiências rendem sempre uma sensação de impotência, um gosto amargo na boca, uma tristeza que insiste em permanecer e uma pergunta no ar, o que nos torna suspeitx, ou o que nos torna sempre os primeiros suspeitxs de tudo?

por Laila Batista via Guest Post para o Portal Geledés

Antes que se pense, ‘ih…lá vem o discurso vitimista da população negrx (aspas), convido vocês para voltarem para um Brasil pós-escravista, vamos para o século XIX, lá encontraremos figuras que foram de fundamental importância para legitimar a hierarquia racial entre os povos, como Nina Rodrigues, P Broca, Morton e outros teóricos e estudiosos do determinismo racial. Esse pressuposto que deu base ao racismo brasileiro dialogava diretamente com as teorias do evolucionismo e com o determinismo social. Segundo o pensamento do determinismo racial existe uma diferença entre brancos e negros que correspondem a uma inferiorização do negro, alguns estudiosos defendiam a tese da infertilidade do mestiço.

Desse mesmo determinismo racial também surgiu a política da eugenia, que defendia a melhoria racial, e isso só seria possível impedindo brancos e negros de manterem relações sexuais e gerar filhos. Ainda no que diz respeito ao determinismo racial, duas práticas cruéis foram estimuladas, uma foi a antropometria, ciência para a medição de crânios com a finalidade de justificar a superioridade ou inferioridade entre as raças, e a outra foi a frenologia, com o intuito de através da conformação do crânio conhecer as características e personalidade de pessoas negras. Essa última prática foi utilizada para descobrir criminosos antes que eles pudessem cometer os crimes, pois, através da avaliação de suas características físicas (cor, nariz, boca, testa, cabeça) seria possível o analista prever um possível perfil criminoso.

Essa história assustadora não estava nos nossos livros de história do Brasil, mas é real e nos conta muito sobre a forma como a população negra pós escravidão foi ‘integrada’ na sociedade brasileira. O resgate das teorias raciais que fundaram o racismo brasileiro no Brasil mostra a negação da cidadania, do reconhecimento de negrxs enquanto cidadãos e esse fato não têm sido tão diferentes do que estamos presenciando.

Parece ser o mesmo parâmetro utilizado para render os moradores dos morros e favelas ocupados pelas UPP’S, parece ser os mesmos alvos das balas perdidas, dos suspeitxs em lojas de departamento, dos rolezinhos nos shoppings, são tantas as estatísticas e que só com muita luta conseguimos extrair nomes e histórias dos números.

A história de Claudia Ferreira, mulher, mãe e negra, arrastada por policiais e morta nos deixou sem chão e sem respostas até hoje, a bem pouco tempo a história de Mirian França, mulher negra, nascida no Rio de Janeiro, presa de forma arbitrária e acusada injustamente de um assassinato ganhou as páginas de diversos meios de comunicação e agora uma outra irmã negra, mulher trans, Verônica Bolina, presa arbitrariamente pela polícia paulista, espancada, teve seus cabelos cortados, exposta nua na ala masculina, com o rosto completamente desfigurado, nos faz refletir: será mesmo que superamos as cruéis práticas de frenologia do século XIX?

O perfil suspeito ainda tem cor e tem classe social. O Brasil que sempre se orgulhou de ser um país da diversidade racial e cultural vem sendo desmascarado. Enquanto se camuflava comparado a outros fortes regimes escravistas como o Apartheid na África do Sul e o Jim Crow nos EUA poderia sustentar o mito da democracia racial e do país da cordialidade. E agora que o número de negrxs mortos nesse país cresce de forma assustadora e vem ganhando repercussão devido à forte mobilização dos movimentos sociais e ativistas, não parece ser um país tão “abençoado por Deus e bonito por natureza”, entoado por nós.


Referência:

SCHWARCZ, Lilia Moritz, QUEIROZ, Renato da Silva(orgs.). Raça e Diversidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Estação Ciência: Edusp, 1996.

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