Revistas excluem adolescentes negras: ‘Estou no Brasil, mas me sinto na Rússia’

A pedido da BBC Brasil, a estudante de Jornalismo Isabela Reis analisou o conteúdo de três revistas voltadas para o público adolescente em busca de exemplos concretos da falta de representatividade de meninas negras na mídia. O artigo abaixo faz parte de um especial que busca dar voz a jovens nos principais debates que mexem com o Brasil.

Isabela Reis* Especial para a BBC Brasil

Adolescentes negras

A invisibilidade dos negros na mídia brasileira não é assunto novo, mas as revistas para o público adolescente revelam um quadro cruel de exclusão. Em um país onde 57,8% das meninas de 10 a 19 anos se declaram pretas ou pardas (categorias cuja soma é comumente usada para medir a população negra), as publicações juvenis não as enxergam. Somente as brancas estão nas páginas. Não há diversidade.

É difícil crescer lidando com produtos que não te contemplam. Como explicar para uma pré-adolescente negra, em plena formação de identidade, que ela é bonita, se a revista preferida ignora seu tom de pele? Como enaltecer a beleza afro, se o conteúdo estimula o embranquecimento? Como acreditar que o crespo é normal, se as reportagens só exibem cabelos lisos? Estamos no século 21 e parece que paramos no tempo. Nós queremos existir.

As edições de agosto das três principais revistas para adolescentes do país omitem a população negra. AtrevidaCapricho e Todateen: 294 páginas, apenas cinco fotos de adolescentes pretas ou pardas. Na Capricho, uma imagem estava num anúncio; outra apresentava a nova integrante da equipe de leitoras que colaboram com a revista. Na Todateen, duas fotos estavam no mural de fãs; a terceira, como na concorrente, era da equipe de colaboradoras. E só. A Atrevidanão trouxe uma adolescente negra. As cantoras e atrizes pretas ou pardas conseguiram espaço nas publicações pela fama, não pela cor. Foram 114 páginas de padronização e exclusão.

As redações sabem da composição do público. Quatro das cinco imagens foram enviadas por leitoras negras. Elas compram, leem, se interessam, interagem, participam, colaboram. Elas estão presente e são ignoradas. Não havia um editorial de moda com modelos negras, uma seção de penteados para cabelos cacheados e crespos ou uma dica de maquiagem para pele negra. As revistas abordam bullying, sexo, masturbação, compulsões, vícios, sempre com personagens brancas, como se as questões não afetassem ou não interessassem as negras.

revistas_isabela_reis_624x351_isabelareis_nocredit
Isabela analisou as edições de agosto de três revistas voltadas para adolescentes no Brasil.

O racismo também não foi pauta. Estamos em 2014, as pessoas ainda xingam negros de “macaco” e a juventude negra está sendo massacrada. O Mapa da Violência 2014, da Flacso Brasil, denunciou aumento de 32,4% nos homicídios de negros de 15 a 24 anos entre 2002 e 2012. Para cada jovem branco que morre, 2,7 jovens negros perdem a vida. E ninguém toca no assunto.

As revistas não responderam às tentativas de contato. Se retornassem, conseguiriam justificar? É possível explicar a predominância das brancas nas páginas, quando elas são apenas uma parte das meninas de 10 a 19 anos? Se houvesse lógica nos números, 57,8% das imagens deveriam ser de meninas negras. Não é o que acontece.

Somos aproximadamente 9,7 milhões de cores, de cabelos com personalidade própria, de bocas grandes, de narizes largos, de sorrisos lindos, de leitoras, de público que vai pagar pelas revistas, de lucro. E ainda assim, não estamos lá. A mídia nos vende uma realidade que não existe. Vivemos no Brasil, o país da miscigenação. Ao abrir uma revista, me sinto na Rússia.

É cruel com as crianças que crescem com o sentimento de não pertencer ao universo apresentado nas revistas. É cruel com as adolescentes que se convencem que, ao alisar o cabelo e parar de tomar sol, vão se encaixar no padrão irreal. É cruel com as famílias que precisam trabalhar em dobro para promover a aceitação. Deviam ter as revistas como aliadas, mas elas são, na verdade, um desserviço.

*Isabela Reis é estudante de Comunicação Social da UFRJ e tem 18 anos

+ sobre o tema

Quatro meses após execução, sigilo policial preocupa família de Marielle

Quatro meses após a execução da vereadora carioca Marielle Franco...

Hoje já não preciso esperar por meu filho. O dia a dia de uma mãe negra brasileira!

por Kika Silva Hoje acordei cedo, com a certeza que...

Manifesto: Marcha das Mulheres Negras de São Paulo

Neste 25 de julho, nós mulheres negras e indígenas...

A Mulher Negra e o sexo frágil – por Jarid Arraes

Há muito tempo, o feminismo vem combatendo a idéia...

para lembrar

Mulheres negras vão as ruas no dia 20/11 para dizer ‘fora Temer e nenhum direito a menos’

O movimento negro brasileiro está organizando manifestações em todo...

Comissão mista rejeita todas as emendas à regulamentação dos direitos das domésticas

O texto, aprovado pelo Senado no ano passado, volta...

Professora chama aluno negro de macaco durante briga em escola no Rio

Mãe do adolescente registrou queixa; cena foi filmada por...

A violência política contra parlamentares negras

Somos seis mulheres negras parlamentares. Enquanto você lê este...
spot_imgspot_img

Camilo Cristófaro, 1º vereador de São Paulo a perder mandato por racismo, é investigado também por rachadinha

Na última terça-feira (19), uma sessão marcou a história da Câmara Municipal de São Paulo, quando determinou pela primeira vez a cassação de um vereador por...

‘Coisa de preto’ 2

Num país onde há racismo sem racistas, a cassação do mandato do vereador Camilo Cristófaro (Avante) pela Câmara Municipal de SP é uma vitória a ser...

Luísa Sonza fecha acordo por fim de processo por racismo contra advogada

A cantora Luísa Sonza fechou um acordo com a advogada Isabel Macedo para encerrar o processo em que era acusada de racismo. O trato...
-+=