‘Se quiserem debater, que leiam’, diz Djamila Ribeiro sobre racismo

Para filósofa, deslegitimação de conceitos não é algo novo e militância não ‘deve ficar só na reação’

Por Marília Moreira, do Correio 24 Horas

Foto: Walter Craveiro/ Divulgação

Uma das escritoras mais vendidas do Brasil atualmente, a filósofa paulista Djamila Ribeiro é destaque da programação da Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô) hoje. Ao lado da escritora e poeta cearense Jarid Arraes, Djamila discute o tema Literatura Feminista Negra no Brasil: As Vozes da Vez, às 11h, em mesa mediada pelo jornalista Rodrigo Casarin.

A filósofa, que vem conquistando cada vez mais seguidores com seu trabalho, lançou recentemente o  livro Quem Tem Medo do Feminismo Negro? (Companhia das Letras, R$ 29,90). O título já é um best-seller, assim como O Que É Lugar de Fala (Letramento, R$ 19,90), o primeiro da coleção Feminismos Plurais, que esse mês ganha mais um lançamento: O Que É Interseccionalidade, da pesquisadora baiana Carla Akotirene.

Para Djamila, estar entre os mais vendidos do país é uma grata surpresa. “Mostra que as pessoas querem conhecer outra perspectivas de mundo. É um movimento, e não um momento. Um movimento que começa há muito tempo, com tantas e tantas autoras que possibilitaram a gente chegar hoje a um lugar que só pessoas brancas conseguiam”, diz a escritora ao destacar o fato de O Que É Lugar de Fala ser publicado por uma editora pequena, provando “o quanto é possível criar estratégias para furar certos bloqueios”.

Com o sucesso do seu trabalho, Djamila também vê crescer as disputas em torno de termos que a militância tem pautado. Lugar de fala, por exemplo, tem sido confudido com interdição, silenciamento. Lugar de fala é a compreensão de que todo mundo fala de algum lugar, a partir de determinadas experiências e pontos de partida, explica. “O homem branco heterossexual ainda é visto como como algo universal”, alerta.

Confira entrevista completa:

São de sua autoria dois dos três livros mais vendidos na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano. Como é ver O Que É Lugar de Fala e Quem Tem Medo do Feminismo Negro como dois best-sellers do país?
O Que É Lugar de Fala eu já sabia que ele estava sendo bem vendido, apesar de ser um projeto que sai por uma editora pequena, que vende cada exemplar a R$19,90. Para mim, é uma surpresa boa, que mostra que as pessoas querem conhecer outra perspectivas de mundo. É um movimento, e não um momento. Um movimento que começa há muito tempo, com tantas e tantas autoras que possibilitaram a gente chegar hoje a um lugar que só pessoas brancas conseguiam. Acho que O Que É Lugar de Fala mostra o quanto é possível criar estratégias para furar certos bloqueios. É um livro de uma editora pequena, diferente do Quem Tem Medo do Feminismo Negro?, publicado pela Companhia das Letras. Quando a gente pensa estratégias coletivas, a gente consegue furar a bolha.

Falando nisso, há livros prestes a serem lançados na coleção Feminismos Plurais, não é?
Ainda esse mês lançamos O Que É Interseccionalidade?, de Carla Akotirene. Já está em pré-venda e é o quinto da coleção Feminismos Plurais. A ideia da coleção é a de que a gente pense temas de feminismos negros, mostrando que não é um tema específico, como o status quo  costuma enquadrar. O homem branco heterossexual ainda é visto como como algo universal. O livro de Akotirene, assim como todos os outros da coleção, é muito importante. Traz  um conceito que vem sendo esvaziado, mas que ela mostra de forma potente, embasada.

Não é só o termo interseccionalidade que sofre esse esvaziamento. Lugar de fala também tem sido entendido como interdição de fala. Como é que você encara isso?
Acho que isso parte do racismo epistêmico. Há o incômodo de termos como esses mudarem as regras do jogo. O racismo epistêmico vai desde a invisibilidade à deslegitimação – por muitos anos nossas produções não foram vistas como conhecimentos válidos e hoje continuam a enfrentar esse descrédito. Então, essa deslegitimação passa por esse incômodo de que a gente está pautando o debate a partir de nossos referenciais. Se eles quiserem debater com a gente, eles que leiam. Essa disputa é mais uma maneira de eles chamerem atenção para si mesmos. Eles continuam sendo os protagonistas de tudo. Furamos alguns espaços, mas isso causa um incômodo absurdo. Há uma constante deslegitimação do conhecimento negro. Ninguém fala de Marx, de Sartre, falando eu acho. Mas falam sobre o racismo, feminismo e todas as questões pautadas pelas militâncias desmerecendo nossas produções sem nem mesmo terem lido. Eles acham que são o centro sempre. A resposta que a gente dá é vendendo bem, é vendo o jovem negro ser lido. A resposta que a gente dá é dessa maneira. Esse tipo de deslegitimação não é algo novo.

Você é formada em Filosofia, uma área muito “masculinista, branca e eurocêntrica”, como você ressalta no ensaio biográfico do seu novo livro. Como é que conseguiu transpor essa barreira e falar de assuntos que lhe importavam falar na área acadêmica?
Não foi fácil, ainda mais que eu estudei Filosofia. De fato, uma área branca, masculina, eurocêntrica. Na minha graduação, nas disciplinas obrigatórias, não estudei nenhuma filósofa. Essa foi uma realidade que não existiu nessa época. Minha iniciação científica foi sobre Simone de Beauvoir porque fui buscar fora. Junto a alguns amigos, criamos o Mapô (Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Sexualidade(s) da Unifesp) , um grupo de estudos que organizou vários eventos sobre feminismo dentro da univerdidade. Era um grupo discente, a gente fazia semanas inteiras de dabates, de trabalhos. E para mim foi muito importante isso, de termos nos organizado coletivamente. Eu tive acesso a uma bibliografia que eu não teria. Foi aí que eu vi a possibilidade de falar das coisas que me importavam. Na graduação foi assim. No mestrado, foi todo um exercício de resistência. Menti para ser aprovada…Apresentei um projeto que desde o início eu sabia que não era o que eu queria, mas só assim conseguiria passar. Depois fui aprovada na Fapesp por outro projeto. E mudei de novo. Foram vários exercícios para estudar o que eu queria. O que eu ouvia era que “o que eu fazia não era filosofia”. Fui resistindo, cedendo. Tanto que o título do meu mestrado não tem nada a ver com o que de fato eu pesquisei. Por outro lado, percebo que o livro O Que É Lugar de Fala tem muito da minha pesquisa no mestrado.

Ainda no ensaio que abre Quem Tem Medo do Feminismo Negro, você fala da importância de ter começado a escrever e do receio que dava pautar debates, discussões. Como você avalia esse processo, que comçou e reverberou primeiro na internet?
Isso começou em 2013! O Blogueiras Negras foi o primeiro espaço que me deu essa oportunidade e foi muito importante para mim. Em 2014, comecei a escrever no site da Carta Capital, em um blog chamado Escritório Feminista. Sempre vi a internet como mais um espaço de disputa de narrativa importante. Na internet tem muito isso de esvaizamento de conceitos, de gritaria, mas também é ela que possibilita reflexões aprofundadas, que talvez não chegassem de forma tão fácil e ampla até você. Acho que é preciso usar a internet com estratégia. Através dela conseguimos pressionar a mídia hegemônica, produtores, podemos fazer denúncias. O que a gente não pode é ficar só na reação. Temos que produzir conteúdo que leve à reflexão. A militância muitas vezes fica reagindo a coisas, mas não prouz conteúdo para disputar essas coisas. Ter sabido focar nisso foi importante!

Não é uma tarefa fácil, não é?
A gente tem 130 anos de abolição de escravatura. A gente vai passar muito por essas questões ainda. Vamos focar na energia certa. A gente sabe que o racismo é estrutural e está aí. Quando a gente começa a denunciar, as pessoas se incomodam. Elas que se incomodem! Porque a gente está aqui para fazer essa disputa. E acho muito importante focar na energia da construção, porque as pessoas vêm com o intuito de limar a nossa energia. Não devemos dar ouvido a quem quer nos desmobilizar.

Você falou sobre a importância da internet para pressionar a mídia hegemônica, os produtores culturais. No fim de semana passado, uma situação que ocorreu no show de Jorge Ben Jor, aqui em Salvador, acabou sendo bastante discutida na internet e acabou pautando veículos nacionais. Ao convidar algumas mulheres para o palco, a produção do artista selecionou somente mulheres brancas e as negras da plateia começaram a bradar “Cadê as pretas?”, clamando por representatividade. Isso enquanto ele cantava a música Gostosa. O que você acha dessa reivindicaçaõ?
Essa é uma questão que sempre nos divide. Quando falamos de festas como a Batekoo é essa a questão. Até que ponto a mulher está sendo objetificada? O que eu penso sobre isso é que a violência colonial acaba retirando nossa subjetividade. A gente tem que entender o processo histórico, mas colocar nossos corpos a partir de outras referências. Não podemos tirar o direito da mulher que se sente contemplada ao ser chamada de gostosa de se sentir assim. Há uma discussão politica e uma discussão moral. Por mais que a gente entenda as construções coloniais, a gente não tem que se submeter a elas. Pensar os corpos a partir de outras referências é importante. Não é um debate que tem certo ou errado. Eu, provavelmente, não subiria ao palco. É um assunto complexo, que sempre vai nos levar a questões.

No livro, você narra como algumas pessoas desconhecidas se sentem muito à vontade, no aeroporto, por exemplo, a lhe abordar e perguntar para onde você vai viajar e se você é dançarina ou artista. Perguntas que muito provavelmente não fariam a uma pessoa branca. Recentemente, uma amiga negra foi abordada em um congresso no qual ela palestrava por um homem branco que queria fazer uma foto dela para mostrar à mulher uma baiana negra. Isso é muito comum?
É extremamente comum.  A maioria das mulheres negras passam por isso. As pessoas racistas não reconhecem a nossa humanidade e acham que estamos ali ao dispor delas. Na Flip mesmo eu passei por isso. Estava no evento como uma das convidadas da mesa e uma pessoa da organização me perguntou se eu era a performer que iria se apresentar em seguida. Nada contra, mas as pessoas já partem como algo dado, não tomam nem o cuidado de saber com quem estão falando. Fora essas construções racistas, de que as mulheres negras só podem seguir determinados estilos. As pessoas se sentem no direito de nos incomodar e quando a gente reclama, nós somos agressivas, mal humoradas. Temos de nos contentar com o lugar da submissão ou da objetificação.

E qual a expectativa com a Flipelô?
Eu estou muito feliz! Vou dividir  a mesa com uma companheira, Jarid Arraes, que tem produzido muito. Fazer o debate do meu livro nessa capital negra de histórico de tantas lutas me deixa muito feliz, ainda mais ocupando esse lugar de autora, que é fundamental marcar.

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