Apesar de avanços, a diversidade racial e de gênero no cinema norte-americano cresceu pouco e atrizes ainda são ridicularizadas
Por CAIO NASCIMENTO, do Estadão
As discussões recentes sobre racismo em Hollywood levaram vitórias ao mundo do audiovisual. Depois de um Oscar 2016 polêmico, sem indicações de atores negros pelo segundo ano consecutivo, a edição de 2017 foi a primeira em que três mulheres negras foram indicadas a uma mesma categoria. Viola Davis, Naomie Harris e Octavia Spencer concorreram ao prêmio de melhor atriz coadjuvante.
Apesar dos avanços, o cinema norte-americano continua branco e masculino. Um estudo da Universidade do Sul da Califórnia (USC) alertou que em dez anos, em meio aos 1.100 principais filmes hollywoodianos, apenas quatro diretoras negras estiveram à frente das produções. Além disso, 70% dos personagens das cem melhores obras de 2017 são brancos.
A autora da tese O sensível (não) partilhado: a violência poética e política da (ir)representação do negro em Hollywood, Andréa Cotrim, explica que isso se deve ao fato de que a maioria das produções é financiada por produtores brancos, mesmo quando o tema envolva a negritude. “Há casos em que os atores afrodescendentes aparecem atuando ou como o “melhor amigo” do homem branco ou sendo resgatados de sua condição dolorosa por ele. Isto deprecia o protagonismo negro”, aponta.
Os números espelham essa realidade. O relatório da USC alerta que dentre 95 pessoas que compuseram o alto escalão das sete maiores empresas de mídia da última década, apenas 17 são mulheres e, dessas, também só quatro são negras. Além disso, apenas 63 filmes, dentre os 1.100 (6%) da última década, foram dirigidos por afrodescendentes.
Essa baixa representatividade em Hollywood é ainda mais ofuscada quando se olha para a equipe por trás das obras. Em Doze anos de escravidão, por exemplo, havia seis produtores brancos, dentre eles Brad Pitt, apesar do diretor e do roteirista serem negros.
Como solução, a equipe responsável pelo levantamento aponta que os acionistas das produtoras de filme poderiam exigir práticas inclusivas, como eleger mulheres para cargos de liderança. “É necessário nomeá-las para ocuparem assentos e defender que as empresas estabeleçam metas inclusivas para a contratação de diretoras”, sugere.
Os pesquisadores acreditam, ainda, que os investidores poderiam agir contra abusos. “Em um clima onde o assédio sexual está cada vez mais presente [em Hollywood], eles poderiam exigir atitudes para resolver essa lacuna e criar ambientes onde as mulheres e os negros tenham as mesmas oportunidades que os homens brancos”, completa. Em meio aos cem melhores filmes de 2017, atrizes apareceram quatro vezes mais com trajes sensuais do que o sexo oposto. Dentre elas, 40% são jovens de 13 a 20 anos.
‘Atrevida, briguenta ou sensual’
O estudo da USC mensura, também, que a cada 60 homens diretores de filmes de ação, há uma mulher exercendo a mesma função. Assim, Andréa Cotrim analisa que o perfil feminino do audiovisual norte-americano está submetido aos homens, sobretudo quando se trata de mulheres negras. “A questão da dominação da mulher negra no cinema ainda é um fetiche para boa parte de um público que a vê como atrevida, briguenta ou sensual. E a hipersensualização dessas atrizes está a serviço do imaginário masculino”, afirma.
Como exemplo, a pesquisadora aponta Leslie Jones, do filme Caçadores de Fantasmas. Na obra, a atriz é a única negra da equipe, a única não cientista e só ela é apresentada como funcionária do metrô de Nova Iorque. “Essas características são marcas identitárias histórica da caricatura do negro em Hollywood. A indústria cinematográfica se adequa a esse cenário até hoje”, explica Andréa.
Diante disso, Leslie Jones foi alvo de ofensas racistas e machistas em seu perfil no Twitter após o lançamento do longa-metragem, em 2016. Usuários a compararam com gorilas e fizeram uma montagem com sêmen em seu rosto.
Ok I have been called Apes, sent pics of their asses,even got a pic with semen on my face. I’m tryin to figure out what human means. I’m out
— Leslie Jones 🦋 (@Lesdoggg) 18 de julho de 2016
Tradução: “Ok, eu fui chamada de macaco, enviaram fotos de bundas e até tenho uma foto com sêmen no meu rosto. Estou tentando descobrir o que significa ser humano. Estou por fora”.
Exposing I hope y’all go after them like they going after me pic.twitter.com/ojK5FdIA0H
— Leslie Jones 🦋 (@Lesdoggg) 18 de julho de 2016
Tradução: “Expondo-os, eu espero que todos vão atrás deles assim como eles vão atrás de mim”. Abaixo, o internauta diz: “Eu sei que você só queria proteger essa criança”.
O caso é recente, mas a ridicularização da mulher negra no cinema tem raízes no passado. A historiadora Suzane Jardim explica, em seu artigo Reconhecendo estereótipos racistas na mídia norte-americana, que essa representação debochada se firmou nas produções de Hollywood com o lançamento dos produtos culinários da Aunt Jemina, em 1889.
A marca tinha em seu logo uma mulher negra no perfil Mammy, conhecida pelos norte-americanos como uma escravizada gorda, assexuada e que só sabia servir aos seus patrões brancos – semelhante à Tia Anastácia, do Sítio do Pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato. “Essa imagem definiu por anos o lugar da mulher negra na mídia [norte-americana]: só aparecia na função de doméstica e conselheira da patroa”, escreveu Suzane.