Se Roberto Jefferson fosse negro…

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Roberto Jefferson (Foto: Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press/Estadão Conteúdo)

Num multiverso de possibilidades infinitas pensemos se Roberto Jefferson fosse um homem negro. Mais ainda, se fosse um jovem homem negro, pobre, habitante de uma entre tantas das periferias, em uma habitação localizada em uma favela, em uma comunidade, em uma quebrada da vida, ele estaria vivo se houvesse disparado fuzis e duas granadas contra uma força policial estatal?

Na verdade, não é necessário um exercício de grande reflexão para chegarmos a essa resposta!  Possivelmente estaríamos agora tecendo estas linhas sobre mais um caso de morte violenta envolvendo homens negros, mais uma vida perdida que tanto faz a alegria incontida dos programas jornalísticos de cunho sensacionalistas que programa após programa, ratificam a negativa de que “bandido bom é bandido morto”, “se não devia fugiu/atirou por quê?”, “tá com pena? Leva para casa!”, além de, ao mesmo tempo, ratificar a desumanização dessa população em especial. Como que se essa fosse a única maneira de se tratar a quem a sociedade brasileira sempre tratou e considerou, quando muito, como animais.

Uma lógica cruel e truculenta, nada refinada e muito menos sutil, mas extremamente eficiente, vide a popularidade destes programas e os milhares de comentários inflamados, que se segue a cada reportagem ou postagem, desse tipo, realizada. Manifestações de pessoas que apoiam toda e qualquer forma de ação policial, sem nenhum filtro crítico de ponderação para avaliar os motivos, as intenções e as consequências destas práxis correntes de dor e morte que se fazem comum em nossas periferias. Uma naturalidade ante aos absurdos da vida cotidiana, que se aceita sem nenhuma objeção, que os aparelhos de segurança e repressão do Estado ajam de maneiras diferenciadas dependendo da região em que tiver que intervir e principalmente, dependendo do público vítima-alvo em questão. Para uns, os cuidados e o zelo extremo da lei, enquanto para outros, ou melhor “os outros” – que sabemos bem quem são – o mais puro fel de nossos rancores e ódios sociais, de nosso desprezo de classe e racismo. 

Roberto Jefferson é um dos políticos mais influentes do país nas últimas três décadas tornou-se figura proeminente, hora na situação outras na oposição, no cenário das formulações e tramas das relações, nem sempre institucionais, entre legislativo e executivo nos corredores do Congresso Nacional. Para o bem ou para o mal, sempre uma constante aos bastidores de poder da alta política nacional. E após o golpe político de 2016 que determinou o fim do governo de Dilma Rousseff, tornou-se cada vez mais adepto de uma representação política ultraconservadora, com uma discursiva e simbologia que remontava aos piores momentos da nossa história republicana, com loas aos tempos ditatoriais, defendendo a volta dos tempos de exceção, reivindicando o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Além da defesa enfática pelo justiçamento dos marginais, daqueles que confrontam o chamado braço forte da lei. Tornando-se um dos líderes políticos e estrategistas do grupo político que chegou ao poder executivo nacional nas eleições de 2018. Um símbolo dessa malta ultraconservadora que se impõe ante qualquer força em contrário, para manter-se e ampliar seu poder mais e mais, por tempos indeterminados. Em vista de suas intenções de salvar o país de um “perigo comunista” que ninguém sabe ou nunca viu! Em nome da moral e bons costumes, da família e cristandade, contra o politicamente correto, o “marxismo cultural” e o “esquerdismo” em geral. Para isso aliando-se e tornando-se ídolo de grupos milicianos e de supremacistas brancos, adotando para isso falas e ações de teor machistas, xenofóbicas, homofóbicas e racistas, sempre envolto numa espetacularização de sua figura hiper masculinizada apoiada em falas entremeadas por expressões chulas, com armas em punho ameaçando a todos que não acatassem suas vontades, suas “verdades”. Um tom provocativo sempre em escala crescente, em provocações constantes as leis e institucionais democráticas do Brasil, o que levou a – depois de várias situações – sua inelegibilidade e posteriormente prisão por tais atos. Com constantes ameaças de morte tanto aos grupos que considerava inimigos da nação (movimentos sociais populares e progressistas, as representações políticas das chamadas minorias sociais), como aos que considerava como inimigos (políticos de oposição, artistas e jornalistas esquerdistas e o STF) do desgoverno Bolsonaro. Lives, postagens e entrevistas reafirmando as suas posições antidemocráticas e anticonstitucionais. Ofendendo a tudo e a todos, sem a menor preocupação em ter que responder pelos seus atos.

Uma mistura medonha entre cavaleiro templário, inquisidor e cowboy desvairado, bufão sem graça de bravatas e mais bravatas, sempre a espera de um conflito final, para tornar-se mártir de sua causa. Mas sabendo tudo isso se dar – esses devaneios e impropérios repetidamente vocalizados aos quatro ventos – pelo fato dos privilégios que sabe possuir e usufruir por sua condição de homem branco, aparentemente heterossexual, cristão, pai de família, conservador r pertencente a elite política e econômica de nossa sociedade.

Ou você acha, você acredita, que se Roberto Jefferson fosse negro e pobre, ele não estaria preso a tempos? Há tempos… Ou teria conseguido o direito a prisão domiciliar e continuado a desafiar o STF, além de fomentar atos e conspirações antidemocráticas e, ainda assim, ficar em liberdade? A resposta é, novamente, não! Isso só ocorre, pois, mesmo tendo desavenças ou conflitos, a Casa-grande é extremamente benevolente com os seus, complacente e acalentadora, mesmo quando acaba punindo a estes. Evitando ao máximo trazer algum tipo de prejuízo definitivo e irreversível para aqueles que pertencem e representam ao seu círculo racial e social de poder. Dito de forma mais direta e sem rodeios, a elite protege e aconchega os seus, independente do que estes façam ou venham a fazer! Há sempre um atenuante, uma desculpa, ou justificativa para eventuais falhas ou tensionamentos indevidos gerados por seus membros de pertença.

Realidade histórica e social do Brasil que passa despercebida por grande parte de nossa população, que acaba por incorporar como sua, práxis sociais e ideologias que causam, geram sua própria alienação. Sua própria dominação ante aqueles que, de geração em geração, se portam como os senhores, como as senhoras de suas vidas e sentidos. Numa reprodução e perpetuação racial-classista, que ao final de contas não nos torna tão iguais assim perante a prática das leis, mas, na realidade nos situa distantes nos usos e sentidos dos direitos humanos mais fundamentais, impedidos ao acesso de uma efetiva vida cidadã. Sendo por isso que a situação envolvendo a busca e prisão do bufão que se imaginava herói, nos revela muito mais do que foi até agora aparentado.

Aliás, é exatamente o que ela não mostra de maneira explicita que faz com que tal situação nos fale tanto sobre como nossa sociedade é de fato. Uma pessoa, durante mais de seis horas, manteve todo o Brasil, todo o mundo, informado de seus atos pretensamente heroicos e revolucionários, que resultou na prática em um ataque aberto as forças da Polícia Federal que ali estavam para cumprir sua prisão. Ato deliberado ao qual fez questão de gabar-se em suas mídias sociais, tripudiando, pouco se preocupando, com as determinações que almejavam sua captura. E essa é uma realidade inimaginável para uma pessoa negra, ou você acha que um jovem afrodescendente com as mesmas atitudes de antes e durante o processo de busca de hoje, teria o mesmo desfecho, sendo preso. Após a polícia esperar novas orientações visando garantir uma melhor solução sem maiores prejuízos para todos? Sem que vidas fossem colocadas em risco? Mesmo com o procurado tendo ferido dois agentes da lei nesse interim e divulgado tal situação como se estivesse resistindo enquanto um defensor da liberdade contra as arbitrariedades do “Sistema”? Se Roberto Jefferson fosse negro, qual teria sido o final dessa história?

Ainda mais num país em que estas populações, são seguidamente desrespeitadas em seus direitos. Em que mesmo quando não culpados – ou com culpa devidamente comprovada – sem mandados de prisão expedidos, sofrem as mais severas violências, desde arrombamentos e invasões de seus lares e propriedades, espancamentos e torturas. Não só de si, mas de seus entes familiares também. Quando não presos, julgados e condenados a pena máxima, em um país em que não temos oficialmente a adoção e prática pelo Estado da pena capital. A essas pessoas não existe nem mesmo o extremo rigor da lei, não há, efetivamente, a lei. Mas apenas as punitivas deturpadas racistas sobre elas, que justificam esses atos criminosos, como se fossem exemplos de uma verdadeira justiça, perpetrados por guardiões de nossa moral civilizatória ante aqueles que procuram maculá-la. Se o desvairado fosse um homem negro estaria morto, sem dó, sem discussão, friamente julgado e condenado, para vibração daqueles que ali estariam gritando com os olhos arregalados que “bandido bom é bandido morto”! Em mais uma manchete para esse tipo de jornalismo, que se você torcer as folhas ou tocar nas telas, acabará banhado em sangue! Sangue esse que sabemos de quem jorra…

Mas são vozes essas que em meio a toda a situação de desordem que acabou por se instalar, estranhamente não vociferaram suas palavras de ódio ou desejo de morte… Será pelo fato de que naquele momento, alguma coisa estava fora de ordem? De que não era um corpo negro urbano periférico, o alvo a ser abatido?  Uma mídia sensacionalista que se manteve em silêncio, solicitando e pedindo a aplicação de uma solução pacífica para o imbróglio ali estabelecido? Que não podia pedir e vibrar com o sangue que poderia ali vir a ser derramado? Afinal de contas, sua noção de justiça não é para todos que infringem a lei ou não sabem se portar perante ela? Independentemente de quem seja? Na verdade, não, pois quando é um dos seus, que tudo siga e decorra de acordo como formalmente estabelecido. É o famoso respeito as leis quando de meu interesse e desprezo a elas quando envolver aos “outros”. É a hipocrisia dos canalhas que nunca falha!

Se Roberto Jefferson fosse um negro, seria agora, nesse exato momento mais uma estatística de dor e morte, de mais uma vida negra ceifada abruptamente por nossa sociedade racista e seus falsos cidadãos de bem! Mas mesmo abandonado pelos seus, lançado a própria sorte até por seu presidente. No fundo, ele sabe que está tranquilo. Que ao final de tudo acabará bem cuidado e apesar de seus crimes, ainda será compreendido por vários como um mártir, um herói e exemplo a ser seguido. Terá sempre o benefício de agir pelo instinto, por ser impulsivo, mesmo sendo já um senhor em plena vivência da chamada terceira idade. Pois entre os seus sempre existe a proteção e o perdão inconteste. As mesmas pessoas que cobram maturidade e de que os envolvidos em situações indevidas assumam e paguem pelos seus erros, de maneira sumária, mesmo quando são menores de idade ou jovens ainda em formação social, psicológica e cidadã. E que a estes não seja facultado qualquer tipo de perdão, ou novas oportunidades. Mas já ao “tiozão de espingarda e granada”, paladino da moral e dos bons costumes, tudo pode, tudo é permitido e tudo é perdoado… Seletividade moral estranha essa, não?

Mas, se Roberto Jefferson fosse negro… Eu e você, todos nós já sabemos qual teria sido o final dessa história! Ou você tem alguma dúvida sobre isso? 


Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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